O meu telemóvel tocou. Era o meu marido, Pedro.
Eu estava sentada no chão frio da cozinha, ao lado do corpo imóvel da minha mãe.
O cheiro a gás ainda pairava no ar, mas as janelas já estavam abertas.
Eu não atendi a chamada.
Em vez disso, olhei para a certidão de óbito sobre a mesa. Causa da morte: envenenamento por monóxido de carbono. Acidental.
Um acidente. Foi isso que a polícia disse.
Mas eu sabia a verdade. A minha mãe não se matou. Ela foi assassinada.
E o assassino era o meu sogro, o homem que todos viam como um pilar da comunidade, Afonso.
O telemóvel parou de tocar e depois vibrou com uma mensagem.
"Catarina, atende. Onde estás? A Sofia não para de chorar. Precisa de ti."
Sofia. A minha filha.
Senti uma dor no peito. A minha filha de três anos estava com o pai, na casa dos avós. A casa do homem que matou a minha mãe.
Eu tinha de a tirar de lá.
Mas como? Eu não tinha provas. Apenas uma conversa que ouvi por acaso, uma ameaça velada de Afonso à minha mãe há duas semanas.
"Se não convenceres a Catarina a entregar a casa, vais arrepender-te, Helena."
A casa. A única coisa que a minha mãe me deixou. Uma casa modesta, mas era nossa. Afonso queria-a para o seu filho mais novo, o irmão de Pedro.
A minha mãe recusou. E agora estava morta.
O telemóvel tocou outra vez. Desta vez, atendi. A voz de Pedro estava cheia de impaciência.
"Finalmente! O que se passa contigo? Estou a tentar ligar-te há uma hora! A Sofia está com febre, a chamar por ti, e tu não atendes?"
"A minha mãe morreu, Pedro."
Houve um silêncio do outro lado. Apenas por um segundo.
"O quê? Como assim? O que aconteceu?"
A sua voz não tinha o choque que eu esperava. Tinha uma cautela, um distanciamento.
"Fuga de gás. Foi o que disseram."
"Meu Deus, Catarina. Sinto muito. Onde estás? Vou já para aí."
Antes que eu pudesse responder, ouvi a voz de Afonso ao fundo, alta e autoritária.
"Pedro! Onde vais? A tua filha está doente! A tua mulher é adulta, sabe cuidar de si. A prioridade é a Sofia!"
Depois, a voz de Pedro, submissa.
"Pai, a mãe da Catarina..."
"Eu sei! É uma tragédia, mas a vida continua. A nossa neta precisa de nós. A Catarina que venha para cá. Aqui está segura e podemos cuidar dela e da Sofia juntos."
Senti o sangue gelar. Ir para a casa dele? Nunca.
"Catarina," disse Pedro, de volta ao telefone, a sua voz agora firme, repetindo as palavras do pai. "O meu pai tem razão. A Sofia precisa de mim. Vem para cá. Enfrentamos isto juntos, como uma família."
Família. A palavra soou como um insulto.
"Não," disse eu, a minha voz surpreendentemente calma. "Eu fico aqui. Com a minha mãe."
"Não sejas teimosa! Não há nada que possas fazer aí! A Sofia está a arder em febre!"
Ele estava a usar a minha filha contra mim. Como sempre.
"Então cuida da tua filha, Pedro."
Desliguei.
Bloqueei o número dele. Depois o da minha sogra. E finalmente, o de Afonso.
Olhei para a certidão de óbito outra vez. Acidental.
Uma raiva fria começou a crescer dentro de mim.
Eles pensavam que eu era fraca. Que me podiam manipular com a minha filha. Que eu ia chorar num canto e aceitar a "tragédia".
Estavam enganados.
A minha mãe deu-me esta casa. Deu-me a vida.
E eu ia usar as duas coisas para a vingar.