Recebi alta dois dias depois do funeral.
Pedro não me foi buscar. Mandou um táxi.
Quando cheguei a casa, a realidade atingiu-me com a força de um soco.
A porta do quarto de bebé, que eu tinha pintado de amarelo pálido, estava fechada.
Sofia estava no sofá da sala, a perna engessada apoiada em almofadas.
Ela sorriu-me, um sorriso fraco e vitorioso.
"Ana, que bom que voltaste. Senti a tua falta."
A minha madrasta, Clara, saiu da cozinha, a limpar as mãos a um avental.
O meu avental.
"Ah, aqui estás tu. Estávamos a precisar de ajuda. A Sofia precisa de tomar os seus medicamentos."
Ela falava como se eu fosse uma empregada contratada.
Pedro desceu as escadas.
"Finalmente. Pensei que te tinhas perdido. Ajuda a tua mãe com o jantar. Eu vou dar um banho à Sofia."
Dar um banho à Sofia.
As palavras soaram obscenas na minha cabeça.
Eu ignorei-os a todos e caminhei em direção ao quarto de bebé.
A minha mão tremia na maçaneta.
Pedro gritou do fundo do corredor.
"Não entres aí! Eu disse para não entrares!"
Eu abri a porta.
O quarto estava vazio.
O berço, o armário, a cadeira de baloiçar, tudo tinha desaparecido.
As paredes amarelas estavam nuas.
O único vestígio de que ali existiu um sonho era um pequeno sapatinho de lã que tinha caído para trás de onde estava o berço.
Eu peguei nele. Era tão pequeno.
Virei-me e vi Pedro parado na porta, a sua cara era uma tempestade.
"Onde está tudo?"
"Eu vendi. Precisávamos do dinheiro para pagar as despesas médicas da Sofia e o arranjo do carro."
Ele disse aquilo sem um pingo de remorso.
"Tu vendeste as coisas do nosso filho?"
"Ele não precisa delas, pois não? Temos de ser práticos, Ana. A vida continua."
"Para ti, talvez."
Eu apertei o pequeno sapato na minha mão.
"Isto não é vida, Pedro. Isto é um inferno. E eu vou sair dele."
Fui para o nosso quarto e comecei a fazer uma mala.
Roupas. Artigos de higiene. O meu passaporte.
Clara apareceu na porta.
"O que pensas que estás a fazer?"
"Estou a ir embora."
"Não sejas ridícula. O Pedro não te vai deixar ir. E para onde irias? Não tens ninguém."
Ela tinha razão. O meu pai morrera há anos, e a minha mãe... bem, a minha mãe era a Clara.
Mas eu preferia estar na rua a ficar ali mais um minuto.
Pedro entrou no quarto, arrancando a mala da minha mão.
"Eu disse que ias esperar. Não me vais desobedecer."
Ele agarrou-me pelo braço, a sua força assustou-me.
"A Sofia precisa de nós. Vais ficar aqui e fazer o teu papel."
"O meu papel? Qual é o meu papel? Ser a vossa criada?"
Sofia chamou da sala, a sua voz manhosa e fraca.
"Pedro? Está tudo bem? Estou com sede."
Pedro largou-me o braço imediatamente.
"Vês? Ela precisa de mim."
Ele olhou para mim uma última vez, os seus olhos frios como gelo.
"Não tentes mais nenhuma estupidez, Ana. Tu não vais a lado nenhum."