"Eu, Pedro Almeida, em pleno uso de minhas faculdades mentais, deixo todos os meus bens, incluindo a empresa de arquitetura 'Construções Futuro', a minha participação em outras empresas, imóveis e todos os saldos em contas bancárias, para a minha amada, Juliana Bastos."
Um silêncio chocado encheu a sala. Minha mãe, Dona Lúcia, e meu irmão, Miguel, que estavam sentados em cadeiras desconfortáveis, olhavam incrédulos. Eu me lembrava daquele momento, da dor aguda que me atravessou o peito. Mas agora, revendo a cena, era apenas um frio entorpecente.
O advogado continuou, sua voz monótona e cruel.
"Além disso, expresso meu último desejo. Minha ex-parceira, Sofia, com quem não tenho mais nenhuma ligação emocional, mas que me conhece bem, deverá organizar meu funeral. Ela deverá garantir que tudo seja do agrado de Juliana. Peço também que Sofia, como um último gesto de nossa história passada, cuide de Juliana em seu luto, pois ela está devastada com a minha partida."
Cada palavra era um tapa na minha cara. Mesmo morto, Pedro conseguia me humilhar. Ele me legava as tarefas, a dor e a responsabilidade, enquanto entregava a Juliana a fortuna que eu ajudei a construir. A fortuna que foi construída sobre as minhas ideias, os meus projetos, as minhas noites em claro.
Minha mente voltou no tempo, para o nosso pequeno apartamento alugado. O cheiro de macarrão instantâneo, o único jantar que podíamos pagar muitas noites. Eu, debruçada sobre a prancheta de desenho até as três da manhã, enquanto Pedro dormia. Meus dedos doíam, meus olhos ardiam, mas eu continuava, porque ele dizia que estávamos construindo nosso futuro.
"Só mais um pouco, meu amor," ele sussurrava, beijando minha testa. "Logo você não vai mais precisar trabalhar tanto. Eu vou te dar o mundo."
Ele me deu o mundo, sim. O mundo da humilhação e da servidão.
Eu via agora, com uma clareza terrível. Para ele, eu nunca fui uma parceira. Eu era uma ferramenta. Uma arquiteta talentosa e barata, uma empregada doméstica que não precisava de salário, uma cuidadora que ele podia usar e descartar.
Ele usou minhas ideias para fundar a empresa, usou meu talento para ganhar prêmios e reconhecimento, e quando a herdeira rica Juliana apareceu, ele me descartou como lixo. E agora, até na morte, ele queria que eu continuasse a servi-lo, servindo à mulher que tomou o meu lugar.
Uma raiva fria e profunda começou a borbulhar dentro de mim. Uma raiva que eu não senti da primeira vez, quando estava cega pela dor e pelo choque.
Todo o meu sacrifício, todo o meu amor, toda a minha dedicação... para quê? Para que ele pudesse viver uma vida de luxo com outra mulher e depois me deixar com a responsabilidade de limpar sua bagunça final?
A injustiça da situação era tão grande, tão avassaladora, que me sufocava.
Eu olhava para o rosto satisfeito de Juliana, que derramava lágrimas de crocodilo ao lado de sua mãe, e para a expressão arrogante dos pais de Pedro. Eles sabiam. Eles todos sabiam e concordavam com aquilo.
Naquele momento, revivendo minha própria tragédia, um pensamento tomou forma. Se eu tivesse outra chance. Ah, se eu tivesse apenas mais uma chance, as coisas seriam muito, muito diferentes.