Capítulo 3 Capitulo três

Leticia Albuquerque.

Era por volta da meia-noite e o barulho da casa ao lado era tão alto que eu podia sentir minha cama tremendo. Levantei-me muito irritada. João não conseguia dormir, não sentia mais dor, nem reclamava. Quando saí de casa, ele resmungou alguma coisa, talvez para evitar o incômodo que eu causaria. Mas seus esforços foram em vão. Quando me percebi, já estava lá.

Quando voltei, ele ainda estava acordado e agora sentado na cama.

- Você está bem? – ele me perguntou interessado e demorei um pouco para responder à pergunta.

- Estou – respondi, mas sabia que tinha uma ruga de irritação na testa.

- Você não precisa ir lá toda vez que eles resolvem fazer uma festa - João tinha tanto cuidado para não incomodar os outros que deixou que outros tirassem a paz dele também - eles são bons vizinhos.

- Não há nada de bom em perturbar o condomínio inteiro – minha voz soou áspera – Ravi é tão preguiçoso e tem péssimas amizades.

- O que exatamente aconteceu lá fora?

João já era um senhor de mais de sessenta anos, e pela experiência e convivência me conhecia melhor do que ninguém. Houve silêncio entre sua pergunta e minha resposta, enquanto eu ainda estava tentando entender a confusão de sentimentos que tomaram conta de mim.

- Não há por que o senhor se preocupar – dei de ombros ao me lembrar daquele rapaz arrogante – espero nunca mais encontrar aquele homem na minha vida.

- De quem você está falando?

- Pai - respirei fundo e tentei me acalmar, coloquei todas as lembranças daquele encontro no fundo da minha memória – é hora de você dormir. Não quero receber reclamações amanhã de Maria me dizendo que você dormiu direito.

- Maria, não tem do que reclamar – bufou, parecendo irritado só de lembrar dela – tem certeza de que está bem?

– Melhor agora – ofereci-lhe um sorriso tranquilizador – amanhã conversamos mais sobre isso.

Mas não conversamos. Eu não queria mais falar sobre os acontecimentos daquela noite, nem me lembrar das festas de Ravi ou de seus amigos irritantes. Apaguei a luz e me concentrei em dormir.

Já era dia lá fora quando acordei com o despertador. Levantei-me e observei meu pai dormir no que parecia um sono pesado. O ronco vindo de seus pulmões me dizia que ele não iria acordar tão cedo. Corri para o banheiro para tomar um banho e me preparar para o trabalho. Eu queria estar pronta antes de Maria chegar. Entrei na cozinha fazendo café quando a porta da frente se abriu. Passos apressados vieram em minha direção quando os olhos enrugados e amorosos de Maria se encontraram com os meus.

- Desculpe o atraso, – ela disse enquanto pendurava sua bolsa gasta no batente da porta presa à parede da entrada.

Olhei para o relógio e achei estranha a percepção de tempo de Maria. Não era nem vinte minutos depois de sua chegada normal.

- Está um frio absurdo lá fora – ela ainda estava com pressa de falar – e ontem à noite houve um terrível acidente com o marido da minha vizinha.

- Como isso aconteceu? – Coei o café e o cheiro sempre era maravilhoso.

- Ele foi atropelado - ela parecia preocupada quando disse isso - ele voltava de um trabalho de entrega quando foi atingido por um veículo. Milagrosamente, o homem não morreu.

Maria foi até mim e encheu uma xícara de café, sem esperar que eu colocasse na jarra.

- Foi realmente tão ruim assim?

- Extremamente grave – tomou um gole – fez uma cirurgia ontem à noite e está em coma.

- Sinto muito, Maria – olhei para ela e lembrei que precisava beber o meu café - o motorista foi preso?

- Ele se entregou – bebeu mais uma vez – dirigia embriagado.

Olhei para ela muito assustada e pensando no acidente.

- Que absurdo – meus olhos se arregalaram - desejo rápidas melhoras ao seu vizinho e que esse motorista fique detido por muito tempo.

- Espero que sim. – Ele terminou o último gole de seu café. Pôs o copo no lava-louças e pareceu regressar à sua própria realidade – e o João, como está?

- Ele está dormindo – então lembrei que precisava terminar meu café rápido – e, por causa dos acontecimentos da noite anterior, ele não acordará tão cedo.

- Outra festa?

- Isso não seria novidade – dei um longo gole e olhei para ela – não o deixe sem comer por horas.

- Vou tentar cumprir essa tarefa impossível – disse – mas não se preocupe.

- Obrigada, Maria – coloquei meu casaco e peguei minha bolsa – até a noite.

Eu a ouvi dizer para ter cuidado quando saí pela porta. Um vento gelado atingiu meu rosto e eu estremeci. Desci a rua correndo quando vi Ravi com outros dois rapazes na porta de sua casa. Nenhum deles parecia com o homem da noite anterior. Suspirei aliviada. Mas Ravi parecia preocupado. Ele não me notou passando, mas logo terei notícias dele, quando bater em sua porta novamente para avisar seus pais de que ele se divertiu enquanto eles estavam fora.

Voltei minha atenção para a estrada por onde estava andando e em vinte minutos avistei uma grande casa ao longe. O orfanato parecia aqueles velhos castelos medievais. Casa abandonada com uma aparência assustadora. Com enormes janelas imperiais e paredes construídas de tijolos marrons. Localizava-se em uma rua isolada das demais na zona oeste de Curitiba. Mas o ambiente era familiar para mim. Tirei as chaves da bolsa e atravessei o longo jardim em frente à residência. Na janela do andar de cima, vi a irmã Adelina me observando. Eu sorri para ela antes de ir para a porta da frente e entrar. Gustavo nem me deu tempo de colocar o casaco em uma das cadeiras da entrada. Ele me abraçou com força, como todas as manhãs.

- Bom dia, campeão – passei as mãos nas costas dele, enquanto me abaixava para ficar na altura dele – dormiu bem?

- Como todas as noites – ele sorriu e seus dentes eram quase todos de leite. Ela tinha olhos pequenos e cabelos lisos.

- Você já tomou café da manhã? – Eu perguntei.

- Eu estava esperando por você.

Gustavo era órfão. Seus pais morreram em um acidente de carro quando ele tinha apenas dois anos. Nenhum parente próximo queria ficar com ele. Agora, aos seis anos, o Orfanato Madre Teresa era o lar que ele tinha, e eu era a família que ele conhecia.

- Tenho que ir ao oratório – lembrei a ele – e só então tomarei café com você. Você pode esperar.

- Claro que sim. – Levantei-me ainda olhando em seus olhos.

- Espere por mim no refeitório e estarei lá em vinte minutos.

Ele assentiu e correu para o outro cômodo da casa. Desci ao porão e à capela. O orfanato era uma antiga fazenda do império. Foi construído em 1859 e foi uma casa baronial de sucesso. A capela permaneceu intocada desde a sua construção. De todos os cômodos daquela casa, esse era o meu preferido. Eu não era católica, mas uma herege protestante, como me chamava Irmã Adelina. Eu gostava de ir naquele lugar e me ajoelhar, agradeci a Deus por aquele dia e por tudo mais.

Um desses dias, semanas depois da festa na casa de Ravi, enquanto eu limpava a capela, a irmã Adelina entrou apressada no ambiente. Ao meu lado, com aquele ar mal-humorado de sempre, trouxe-me notícias que achei muito desagradáveis.

- Recebemos uma ordem judicial – levantei-me e olhei para ela com os olhos arregalados – um homem condenado virá ao orfanato para prestar serviços comunitários.

- E você aceitou?

- O casarão é do governo – ela permaneceu com uma expressão não muito agradável – só mantemos o orfanato graças a doações de órgãos públicos. Não podemos negar. Nem deveríamos.

- Um criminoso em um orfanato?

Irmã Adelina não disse nada sobre meu comentário.

- Você ficará responsável pela supervisão do rapaz – ele me informou - ele chegará na segunda-feira.

- Não posso... – gaguejei e percebi que era um insulto – Já estou cuidando das crianças, não vou ter tempo para isso.

- Você vai continuar cuidando disso – disse – vai ter só mais um integrante.

- Mas...

- Sem queixas – levantou a mão – você é bem pago pelo seu trabalho. Então, trabalhe.

Observei a irmã virar as costas e sair da capela com a mesma rapidez com que chegara. Desabei no banco atrás de mim e perguntei qual era o propósito de tudo isso para que minha vida se complicasse tanto assim.

            
            

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