No terceiro dia, quando ela recebeu alta, o sol da manhã entrava pela janela, iluminando as partículas de poeira no ar.
Ela se vestiu devagar, cada movimento um lembrete da sua condição.
O médico lhe deu algumas recomendações, uma receita de analgésicos e um tapinha solidário no ombro.
"Seu marido não veio buscá-la?", ele perguntou, com uma curiosidade contida.
"Ele está muito ocupado no trabalho," Maria respondeu, a voz firme, sem emoção.
Era uma mentira, mas soava mais digna do que a verdade: ele a tinha abandonado para cuidar da amante.
Ela mesma chamou um táxi.
O caminho para casa foi silencioso. A cidade passava pela janela, mas Maria não via nada.
Seus pensamentos estavam focados em uma única coisa: a liberdade.
Quando abriu a porta de casa, o cheiro de comida estragada a atingiu.
A pia da cozinha estava transbordando de louça suja.
Roupas de João estavam jogadas no sofá, no chão, em todos os lugares.
A casa era um reflexo do caos que tinha sido sua vida com ele.
Na vida passada, ela teria suspirado e começado a limpar, a colocar ordem na bagunça dele, a apagar os vestígios da sua negligência.
Desta vez, ela passou por cima das roupas, ignorou a pia e foi direto para o quarto.
Ela precisava de um banho. Precisava lavar de si o cheiro do hospital, o toque dele, o peso da vida antiga.
Horas depois, João finalmente chegou em casa.
Ele a encontrou na cama, lendo um livro.
Ele entrou no quarto fazendo barulho, jogando a maleta no chão.
"Você não fez o jantar? Eu estou morrendo de fome. E a casa está uma bagunça, Maria. O que você ficou fazendo o dia todo?"
A voz dele era carregada de uma irritação que a teria feito encolher no passado.
Agora, ela apenas levantou os olhos do livro, o rosto impassível.
"Eu acabei de sair do hospital, João. Eu perdi nosso filho."
Ele pareceu se lembrar disso pela primeira vez.
Um traço de culpa passou por seu rosto, mas foi rapidamente substituído por uma tentativa de carinho.
Uma tentativa superficial e mal ensaiada.
"Ah, claro. Desculpe, meu amor. Eu tive um dia terrível no hospital. Como você está se sentindo? Precisa de alguma coisa?"
Ele se sentou na beira da cama, tentando pegar a mão dela.
Maria puxou a mão de volta, sutilmente.
"Estou bem. Só preciso descansar."
A frieza dela o desarmou. Ele esperava lágrimas, acusações, drama.
O silêncio dela era mais perturbador.
"Certo. Descansar. Eu vou pedir uma pizza, então," ele disse, se levantando, claramente desconfortável.
Maria não respondeu. Apenas voltou a atenção para o seu livro.
Mas ela não estava lendo.
Ela estava pensando na passagem de ônibus guardada no fundo da sua gaveta.
Ela estava planejando sua fuga.
Ela o ouviu no telefone, falando alto, rindo de alguma piada com o entregador de pizza.
A vida dele continuava, intocada pela tragédia que tinha acontecido com ela, com eles.
Para ele, o aborto foi apenas um inconveniente.
Para ela, foi o ponto final.
Naquela noite, ela fingiu dormir enquanto ele comia a pizza na sala, assistindo futebol.
Ela não sentia tristeza. Não sentia raiva.
Sentia uma clareza cortante.
Cada som que ele fazia, cada risada alta, cada migalha que caía no chão da sala, era mais um prego no caixão do casamento deles.
Ela estava apenas esperando o momento certo para ir embora.
E desta vez, não haveria volta.