A lembrança da vida passada voltou com força.
Maria se recordou de como, naquela época, ela tinha cedido.
João a pressionou por dias. Ele usou de tudo: chantagem emocional, promessas vazias, crises de raiva.
Ele dizia que se ela o amasse, ela entenderia. Que era um pequeno sacrifício para manter a paz.
E ela, exausta e de luto, acabou concordando.
Ela viu Ana receber o prêmio no palco, com um sorriso vitorioso, enquanto João a aplaudia da primeira fila, os olhos brilhando de orgulho.
Naquele dia, Maria se sentiu a mulher mais tola do mundo.
Mas não desta vez.
"Não", ela repetiu, a voz firme, cortando o ar tenso do quarto. "A vaga é minha por direito. Eu trabalhei duro por ela."
O rosto de João se contorceu em uma máscara de fúria.
Ele não esperava resistência. Ele estava acostumado a conseguir tudo o que queria dela.
"Por direito? Que direito você tem? Você é minha esposa! Seu dever é me apoiar! Facilitar a minha vida!"
"Facilitar a sua vida significa me anular? Significa entregar o que é meu para a sua amante?"
O veneno na voz dela o chocou. A Maria que ele conhecia era dócil, submissa.
Aquela mulher na sua frente era uma estranha.
"Você não entende nada!", ele gritou, gesticulando descontroladamente. "Isso não é sobre você! É sobre a Ana! Ela precisa de mim!"
"Então vá ajudá-la. Use o seu dinheiro, não o meu."
"Eu não acredito que você está sendo tão egoísta! Depois de tudo que eu fiz por você!"
"O que você fez por mim, João? Me abandonou no hospital? Me traiu por trinta anos? Me pediu para sacrificar minha carreira pela mulher com quem você dorme?"
Cada pergunta era uma facada na hipocrisia dele.
Ele ficou sem palavras, o peito subindo e descendo com raiva.
Ele a olhou com desprezo, como se ela fosse algo sujo.
"Você se tornou uma mulher amarga, Maria. Fria. Não é à toa que as coisas acontecem com você."
O insulto foi baixo, cruel, uma tentativa de culpá-la pela própria dor.
Ele se virou, pegou as chaves do carro na cômoda e foi em direção à porta.
"Eu não vou ficar aqui para ouvir isso. Eu vou para um lugar onde sou apreciado. Vou ficar com a Ana."
Ele bateu a porta do quarto com uma força que fez os vidros da janela tremerem.
Segundos depois, Maria ouviu a porta da frente bater com ainda mais violência, seguida pelo som de pneus cantando no asfalto.
A casa ficou em silêncio.
Um silêncio abençoado.
Na vida passada, ela teria se encolhido na cama e chorado por horas. Teria se sentido culpada, inadequada.
Hoje, ela sentiu alívio.
O show tinha acabado. A máscara dele tinha caído por completo.
Ela se levantou da cama, ainda sentindo uma pontada de dor, e foi até a janela.
O carro dele já tinha sumido na esquina.
Ela sabia para onde ele estava indo.
E pela primeira vez, ela não se importava.
Ela não ia mais implorar por sua atenção. Não ia mais competir por seu afeto.
A competição tinha acabado, porque ela tinha abandonado o jogo.
Ela voltou para a gaveta, pegou a passagem de ônibus e a colocou sobre a cama.
Rio de Janeiro.
Uma nova vida.
Faltava apenas uma coisa a fazer antes de partir.
Lutar pela vaga de "trabalhadora exemplar".
Não pelo dinheiro. Não pelo reconhecimento.
Mas por princípio.
Para provar a si mesma que ela nunca mais abriria mão do que era seu por direito.