Cicatrizes de Um Passado
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Capítulo 1

A consciência voltava aos poucos, turva e pesada. A luz fria da cela da prisão era a primeira coisa que eu via todas as manhãs nos últimos três anos, mas hoje parecia diferente, mais opressiva. Meu corpo todo doía, uma dor surda e constante que vinha da cicatriz na minha lateral, um lembrete diário do rim que doei um ano atrás, na esperança de reduzir minha pena.

Um barulho metálico ecoou pelo corredor silencioso. A porta da minha cela se abriu. Dois guardas entraram, seus rostos impassíveis como sempre.

"Gabriela, está na hora."

Eu não me movi. Meu coração começou a bater descontrolado. Hoje era o dia. O dia em que eu seria forçada a assinar os papéis para outra doação de órgão. Outra cirurgia. Eu sabia o que isso significava. Uma pessoa não sobrevive sem rins.

"Eu não vou", minha voz saiu fraca, um sussurro rouco.

Os guardas se entreolharam, e um deles se aproximou, sua mão pronta para me agarrar. Mas antes que ele pudesse me tocar, uma figura apareceu na porta.

Era Marina.

Ela estava deslumbrante, como sempre. Vestia um terninho caro, de um corte impecável que eu sabia ser de sua última coleção. Seu cabelo estava perfeitamente arrumado, e sua maquiagem era sutil, mas realçava sua beleza fria. Ela parecia uma deusa da moda que desceu de seu pedestal para visitar uma reles mortal.

Ela, que eu tirei da lama, que ajudei a se tornar a designer mais renomada do país.

Ela, que me amou, me usou e depois me jogou nesta cela para apodrecer.

Ela, que me colocou aqui depois que eu "acidentalmente" causei a morte de sua musa, sua ex-namorada, Luiza. Uma morte que me custou a liberdade e a vida.

Marina dispensou os guardas com um aceno de cabeça. Eles saíram, fechando a porta atrás de si, nos deixando sozinhas. O silêncio era denso, carregado de ódio e de memórias dolorosas.

"Gabi", ela disse, seu tom era calmo, quase gentil, o que o tornava ainda mais cruel. "Vim te buscar."

Eu a encarei, sem conseguir acreditar. "Me buscar? Para onde? Para o matadouro?"

Um leve sorriso brincou em seus lábios. "Não seja tão dramática. É para a cirurgia. É para a Luiza."

Meu sangue gelou. Minha mente parou de funcionar por um segundo.

"O quê? Luiza está morta."

"Ela não morreu", Marina respondeu, se aproximando. "Foi tudo um mal-entendido. Ela esteve em coma todo esse tempo, mas agora os médicos encontraram um doador compatível. Você."

As peças do quebra-cabeça se encaixaram em minha mente com uma clareza aterrorizante. A "morte" de Luiza foi uma farsa. O coma. Tudo. Um plano para me tirar do caminho. E agora, elas precisavam do meu outro rim para completar o serviço. Para me apagar de vez.

"Marina, por favor", eu implorei, o desespero tomando conta de mim. "Eu já te dei tudo. Eu te tirei da rua, eu te dei uma carreira, eu te dei meu amor. Eu já doei um rim aqui dentro. Você não pode fazer isso. Isso vai me matar."

Ela parou na minha frente, seu olhar era desprovido de qualquer emoção. Nenhuma culpa, nenhum remorso. Apenas uma determinação gélida.

"Eu sei", ela disse, sua voz baixa e firme. "Mas a Luiza precisa viver. Eu a amo, Gabi. Você nunca entenderia."

Ela estendeu a mão, não para me ajudar, mas para me mostrar os papéis que segurava. O termo de doação. Minha sentença de morte.

"Assine."

As lágrimas que eu segurava finalmente rolaram pelo meu rosto. A traição era tão profunda, tão absoluta, que queimava mais do que qualquer dor física. O amor da minha vida estava ali, me condenando à morte pelo bem de outra pessoa.

Eu fui levada para a sala de cirurgia. As luzes ofuscantes acima de mim eram as últimas coisas que eu via. Senti a picada da agulha no meu braço, e o anestésico começou a correr pelas minhas veias. Minha consciência começou a se esvair, meu corpo ficando pesado.

O rosto frio de Marina foi minha última visão. O ódio que senti por ela era a última emoção. Meu coração doía, não pela morte iminente, mas pela totalidade da sua traição.

Então, tudo ficou escuro.

Eu pensei que estava morta, flutuando em um vazio sem fim. Minha alma estava a caminho do inferno, eu tinha certeza.

Mas, de repente, uma luz. Um som. Uma dor aguda na minha cabeça.

Abri os olhos, piscando contra a claridade. Eu não estava em um hospital. Eu estava em um quarto familiar. O nosso quarto. O quarto que eu dividia com Marina na nossa casa, a Villa da Primavera.

A luz do sol entrava pela janela, e o cheiro de café fresco pairava no ar.

Minha cabeça latejava. Eu me sentei na cama, confusa. Olhei para minhas mãos. Elas não eram as mãos de uma prisioneira, magras e pálidas. Eram minhas mãos de antes, saudáveis. Olhei para meu corpo. Nenhuma cicatriz da primeira doação de rim.

O que estava acontecendo?

Então, eu ouvi vozes vindo do andar de baixo. A voz de Marina, e outra voz. Uma voz que me assombrou por três anos.

A voz de Luiza.

"Marina, meu amor, a Gabi ainda está dormindo? Ela não vai gostar de me ver aqui no café da manhã", dizia Luiza, com um tom manhoso e provocador.

"Não se preocupe, querida. Ela vai ter que se acostumar. Eu cuido dela", respondeu Marina.

Meu coração parou. Eu olhei para o calendário na mesa de cabeceira. A data me atingiu como um soco no estômago.

Era o dia. O dia em que Luiza reapareceu em nossas vidas. Três anos no passado.

Eu não morri.

Eu renasci.

Uma risada baixa e amarga escapou dos meus lábios. A dor, a traição, a sentença de morte... tudo era real. A memória estava gravada em minha alma.

Elas planejaram tudo. A "morte" de Luiza foi uma farsa para me incriminar. A prisão, a doação forçada de órgãos. Tudo um grande e cruel plano.

As lágrimas secaram em meu rosto. O desespero deu lugar a uma frieza cortante. A Gabi ingênua e apaixonada morreu naquela mesa de cirurgia. A mulher que renasceu só tinha um propósito.

Vingança.

Eu olhei meu reflexo no espelho. Meus olhos, antes cheios de amor por Marina, agora queimavam com um ódio gelado.

Marina, você me tirou tudo. Agora, eu vou tirar tudo de você. Sua carreira, seu status, seu dinheiro. E o mais importante... eu vou destruir o que você mais ama. Eu vou fazer você e a Luiza pagarem, centavo por centavo, por cada gota de dor que me causaram.

Desta vez, a história seria diferente.

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