Clara desceu as escadas mais tarde, encontrando-me na sala de estar lendo um folheto da universidade que eu pretendia frequentar. Ela olhou para o papel com desdém.
"Sério, Sofia? Faculdade?" ela zombou, sentando-se no sofá oposto como uma rainha em seu trono. "Dança é talento, instinto. Não se aprende isso em livros. Pra que perder tempo com estudo?"
Eu respirei fundo, controlando a raiva que subia pela minha garganta. "Eu quero mais do que apenas dançar, Clara. Eu quero entender a história, a técnica, a teoria. Quero ser completa."
"Que bobagem," ela disse, revirando os olhos.
Naquele momento, Pedro desceu. Ele ouviu o final da nossa conversa.
"Deixa ela, Clara," ele disse, mas seu tom não era totalmente de apoio. Ele se virou para mim, e seu rosto tinha aquela expressão possessiva que eu passei a odiar. "Mas a Sofia não vai pra longe. O lugar dela é aqui, com a gente, no nosso mundo do samba. Você não precisa de faculdade pra ser a melhor, pequena. Eu te ensino tudo o que você precisa saber."
Era isso. O "cuidado" dele. Não era sobre meu bem-estar ou meus sonhos, era sobre me manter sob seu controle, em seu palco, onde ele pudesse me moldar e me exibir como sua grande descoberta. O carinho de irmão era uma gaiola dourada.
Eu finalmente entendi, com uma clareza dolorosa, que eu nunca seria livre enquanto estivesse perto dele.
Pela primeira vez, eu o confrontei diretamente, sem hesitação.
"Meu futuro, Pedro, eu decido," eu disse, minha voz baixa, mas firme como uma rocha. "Ninguém mais."
Ele me olhou, chocado com minha ousadia. Sua boca se abriu para responder, para provavelmente me repreender como uma criança teimosa.
Mas ele não teve a chance.
"Aiii, amor, minha cabeça está doendo de novo," Clara choramingou, colocando a mão na testa de forma dramática. "A viagem me deixou muito cansada."
Instantaneamente, a atenção de Pedro se voltou para ela. A raiva em seu rosto se dissolveu em preocupação. Ele a pegou no colo com uma facilidade impressionante.
"Vem, meu bem, vou te levar para o quarto. Você precisa descansar."
Ele a carregou escada acima, passando por mim como se eu fosse invisível, como se minha declaração de independência nunca tivesse acontecido. Fiquei parada na sala, ouvindo os passos deles desaparecerem no andar de cima.
A solidão do momento era esmagadora.
Sobre a mesa de centro, havia um pequeno bolo que vovó tinha trazido mais cedo. Havia uma única vela espetada no meio. Peguei um isqueiro, acendi o pavio e fechei os olhos.
Eu não fiz um desejo para mim. Não mais.
"Que ele seja feliz," sussurrei para a chama dançante. "Que ele seja tão feliz que finalmente se esqueça de mim e me deixe ir em paz."
Assoprei a vela.
A fumaça subiu em espiral, levando com ela os últimos resquícios do meu amor infantil.
Sem fazer barulho, subi para o meu quarto. Abri meu guarda-roupa e a mala que estava escondida no fundo. Comecei a arrumar minhas coisas, peça por peça. Apenas o essencial. Deixei para trás todas as roupas, todos os sapatos de dança, todos os pequenos presentes que ele me deu ao longo dos anos.
Cada item deixado para trás era uma corrente que eu quebrava. Estava me limpando dele, da sua influência, da sua história. Estava esvaziando minha vida para poder preenchê-la com algo novo. Algo meu.