Juliette voltou para a mansão que partilhava com Hugo, um mausoléu frio cheio de memórias amargas. O stresse e a dor emocional desencadearam os sintomas da sua doença. Correu para a casa de banho, curvando-se sobre a sanita enquanto uma onda de náuseas a dominava.
Ela vomitou, e o branco da porcelana foi manchado de vermelho vivo. Sangue.
Ela limpou a boca, ofegante, e puxou o autoclismo, vendo a prova da sua mortalidade a ser levada pela água. No momento em que se levantou, a porta abriu-se de repente.
Hugo estava ali, o seu olhar a varrer a divisão, parando nela.
"O que se passa contigo? Estás mais pálida que um fantasma."
O coração de Juliette disparou. Ele não podia saber. Não agora.
"Apenas um problema de estômago," mentiu ela, a voz mais calma do que se sentia. "A comida do almoço não me caiu bem."
Hugo olhou-a com desconfiança, mas antes que pudesse questionar mais, a voz de Cecilia ecoou pelo corredor.
"Hugo, querido! Onde te meteste?"
A atenção de Hugo desviou-se, e ele saiu da casa de banho sem outra palavra. Juliette encostou-se à porta, fechando os olhos, o alívio a percorrer-lhe o corpo.
No dia seguinte, Hugo cumpriu a sua ameaça. Ele trouxe Cecilia para morar na mansão. Não como uma convidada, mas como a nova senhora da casa. Ele exibia o seu afeto por ela abertamente, beijando-a no corredor, rindo das suas piadas à mesa de jantar, tudo para provocar uma reação de Juliette.
Mas Juliette não lhe deu essa satisfação. Ela observava-os com uma indiferença gélida, uma apatia que parecia perturbar Hugo mais do que qualquer ataque de ciúmes. Ela estava a desapegar-se, pedaço por pedaço.
A escalada do conflito atingiu um novo patamar quando Cecilia entrou no pequeno estúdio de música de Juliette, onde ela guardava as suas posses mais preciosas. O olhar de Cecilia pousou numa guitarra antiga, encostada a um canto.
"Que guitarra velha e feia," disse Cecilia, com um sorriso desdenhoso. "Acho que ficaria melhor na lareira."
"Não lhe toques," a voz de Juliette foi baixa, mas carregada de aviso. "Pertenceu à minha avó."
A sua avó, uma lenda do Fado, era o seu ídolo. Aquela guitarra era mais do que um objeto; era um elo com o seu passado, com a sua paixão, com a única parte da sua vida que ainda parecia pura.
Cecilia riu-se e estendeu a mão para a guitarra. "Acho que vou experimentar."
"Cecilia, não," a voz de Hugo soou da porta. Ele entrou, mas não para proteger a herança de Juliette. Ele colocou-se ao lado de Cecilia, um braço possessivo à volta da sua cintura. "Deixa as coisas dela em paz."
O seu gesto, supostamente protetor, teve o efeito contrário. Cecilia, sentindo-se encorajada pela sua proximidade, empurrou a guitarra deliberadamente.
O instrumento caiu no chão com um som horrível de madeira a estalar. O braço partiu-se.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Juliette olhou para a guitarra partida, o seu coração a partir-se com ela. Era como se a última ligação à sua identidade tivesse sido destruída.
As lágrimas que ela segurara por tanto tempo finalmente vieram, silenciosas e incontroláveis. Ela caiu de joelhos, tocando nos destroços da guitarra, o seu corpo a tremer com soluços silenciosos.
Pela primeira vez em anos, Hugo viu a dor crua e desprotegida de Juliette. A sua fachada de indiferença tinha-se desmoronado, e o que restava era uma vulnerabilidade que ele não via desde os tempos de Coimbra.
Um vislumbre de desconforto passou pelo seu rosto. Ele sentiu um impulso estranho de a consolar, de reparar o que tinha sido quebrado.
"Não chores por causa de uma coisa estúpida," disse ele, a sua voz mais áspera do que pretendia. "Eu compro-te uma nova. Uma melhor."
As suas palavras, insensíveis e desajeitadas, apenas aprofundaram a ferida. Ele não entendia. Nunca entenderia.