Quando a Morte Revela a Verdade
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Capítulo 1

A guerra fria entre Juliette Lawrence e Hugo Gordon já durava três anos, transformando-os no casal mais notoriamente disfuncional da alta sociedade de Lisboa. O ódio entre eles era tão puro e intenso que se tornara uma espécie de espetáculo perverso para os outros.

Hoje, contudo, algo mudou.

Sentada no consultório do médico, Juliette olhava para o relatório nas suas mãos, as palavras "cancro do pâncreas, fase terminal" a queimarem-lhe a retina. Restavam-lhe, no máximo, seis meses de vida.

O mundo lá fora continuava a girar, mas o dela tinha parado.

A hostilidade constante, as provocações calculadas, a dor que se infligiam mutuamente... tudo isso pareceu subitamente trivial, cansativo. Pela primeira vez em anos, ela não queria lutar. Só queria paz.

Com as mãos a tremer, ela pegou no telemóvel e ligou para Hugo. Talvez, apenas talvez, pudessem ter uma trégua.

O telefone chamou várias vezes antes de ele atender, a sua voz fria e impaciente como sempre.

"O que queres, Juliette?"

Ela respirou fundo, tentando manter a voz firme. "Hugo, podemos conversar? Sem brigas, só por um momento."

Houve uma pausa, seguida de uma risada sarcástica do outro lado. "Conversar? Sobre o quê? Sobre como és uma estátua de gelo tanto no palco como na cama? Não, obrigado. Prefiro algo com mais paixão."

O coração de Juliette afundou-se. Antes que ela pudesse responder, ouviu uma voz feminina familiar ao fundo, uma voz que conhecia desde a infância.

"Hugo, querido, com quem estás a falar? Deixa isso para lá e vem para a cama."

Era Cecilia Perez, a sua melhor amiga.

A traição atingiu Juliette com a força de um golpe físico, tirando-lhe o ar. A sua melhor amiga e o seu marido. Juntos.

Hugo pareceu saborear o seu silêncio chocado. "Ouviste? A Cecilia está à minha espera. Ela sabe como aquecer um homem. Ao contrário de ti, que só sabes cantar sobre dor, mas és incapaz de sentir qualquer outra coisa."

Ele desligou.

Juliette ficou a olhar para o telemóvel, o som do tom de desligado a ecoar no silêncio do consultório. A dor da traição era tão aguda, tão avassaladora, que quase suplantou o medo da morte.

As memórias voltaram sem serem convidadas. O início de tudo, em Coimbra, durante a universidade. Um romance intenso, apaixonado, que parecia saído de um conto de fadas. Ele, o herdeiro de um império vinícola. Ela, a promissora cantora de Fado de uma família tradicional.

O mal-entendido que destruiu tudo aconteceu no dia do casamento. Cecilia, roída pela inveja, editou uma gravação de uma conversa privada. Na gravação manipulada, Juliette parecia confessar que só se casaria com Hugo pelo prestígio e fortuna da família Gordon.

A verdade era o oposto. Ela admitia que, embora o interesse inicial pudesse ter sido superficial, acabara por se apaixonar perdidamente por ele.

Mas Hugo ouviu a mentira. Cego pela dor e pela traição, ele retaliou da forma mais cruel que conseguiu imaginar: arruinou a adega da família de Juliette, levando o pai dela à falência. Ele queria forçá-la a admitir que o amava, a implorar.

Mas o orgulho ferido de Juliette e a dor pela destruição da sua família fizeram-na dizer exatamente o que ele esperava ouvir: que nunca o amou.

Esse foi o início do abismo entre eles.

Agora, confrontada com a morte e uma traição dupla, Juliette tomou uma decisão. O médico tinha-lhe falado de um tratamento experimental, um procedimento arriscado que poderia induzir uma amnésia seletiva. Apagar memórias específicas.

Ela não queria passar os seus últimos meses a odiar Hugo. Não queria lembrar-se da dor, da humilhação, da traição de Cecilia.

Ela queria esquecer.

"Doutor," disse ela, a voz rouca mas firme. "Eu quero fazer o procedimento. Quero apagar Hugo Gordon da minha memória."

Queria viver os seus últimos dias em paz, mesmo que essa paz fosse uma ilusão construída sobre o esquecimento.

            
            

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