Naquela noite, o silêncio em sua casa era pesado, diferente do habitual. Ana Clara, sua esposa há dez anos, estava quieta demais. Ele a encontrou na varanda, olhando para o vazio da cidade iluminada.
"Você está bem?" , ele perguntou, envolvendo-a com os braços.
Ela não respondeu, apenas se encolheu levemente ao seu toque. Ele atribuiu isso ao choque da notícia, afinal, Gabriel trabalhava no mesmo andar que ela.
No dia seguinte, o mundo de João Carlos desmoronou.
A polícia ligou para o seu escritório. Houve um incidente no prédio onde moravam. Ana Clara. Ela tinha saltado.
O chão desapareceu sob seus pés. A sala girou. Ana Clara, sua esposa calma e reservada, a mulher com quem ele compartilhava a vida há uma década, estava morta. Suicídio. A palavra ecoava em sua mente, sem sentido, brutal.
Os dias que se seguiram foram um borrão de dor e confusão. Durante a arrumação de seus pertences, um ato que parecia uma profanação, ele encontrou uma caixa de madeira escondida no fundo do armário dela. Dentro, dezenas de cadernos de capa dura. Eram seus diários.
Ele hesitou, sentindo que estava invadindo um espaço sagrado. Mas a necessidade de entender, de encontrar uma razão para aquele ato desesperado, foi mais forte.
Ele abriu o primeiro caderno. A caligrafia dela, elegante e fluida, encheu a página. E com cada palavra que lia, o coração de João Carlos se partia em mais um pedaço.
Os diários não eram sobre ele. Não eram sobre o casamento deles. Eram sobre Gabriel.
Página após página, Ana Clara descrevia seu amor avassalador pelo estagiário. Um amor que ela chamava de "amor de lua branca" , puro, intocável, o único amor verdadeiro de sua vida. Ela o conhecia há anos, muito antes de conhecer João Carlos.
"Hoje, meus pais me forçaram a ir a um encontro com João Carlos. Ele é um bom homem, gentil, estável. Exatamente o que eles querem para mim. Mas ele não é o Gabriel. Ninguém nunca será."
"Casei-me com João Carlos. A cerimônia foi linda. Todos disseram que éramos o casal perfeito. Senti-me suja quando ele me beijou. Meu corpo estava lá, mas meu coração gritava o nome de Gabriel."
A verdade o atingiu com a força de um soco no estômago. Dez anos. Uma década inteira de casamento. E ele nunca tinha sido o escolhido. Ele era o substituto, o prêmio de consolação, a fachada conveniente para que ela pudesse manter seu amor platônico por outro homem.
Ele se lembrou de todas as vezes que ela se afastava de seu toque, de sua relutância em visitar sua família, de sua tristeza inexplicável. Tudo fazia sentido agora. Cada sorriso forçado, cada ato de carinho calculado. Era tudo uma farsa.
O último registro no diário foi escrito na noite anterior à sua morte.
"Ele se foi. Gabriel se foi. Meu sol se apagou. Não há mais razão para continuar respirando neste mundo sem ele. Perdão, João Carlos, por ter te usado. Você merece alguém que o ame. Eu não sou essa pessoa. Nunca fui."
A raiva se misturou à dor, uma combinação tóxica que queimava em seu peito. Ele foi um tolo. Um tolo apaixonado que dedicou sua vida a uma mulher que o via como um obstáculo, uma formalidade. A humilhação era insuportável.
Ele não era o marido dela. Ele era o vilão na história de amor dela com Gabriel.
A depressão o consumiu. Ele parou de comer, de trabalhar, de viver. O mundo perdeu a cor. A dor da traição era uma ferida aberta que nunca cicatrizava. Seu corpo, enfraquecido pela tristeza, cedeu.
Numa tarde cinzenta, deitado na mesma cama que um dia dividiu com a mentira, João Carlos fechou os olhos. O peso de dez anos de engano foi demais para suportar. Seu coração, exausto e partido, simplesmente parou de bater.