A Maldição de Ricardo
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Capítulo 1

O telefone tocou, um som estridente que cortou o silêncio do pequeno apartamento. Ricardo atendeu, a voz cansada. Era do hospital. Houve um acidente. Uma moto. O nome do seu filho, Felipe, foi pronunciado com uma formalidade fria que gelou seu sangue. Ele precisava ir para lá, imediatamente.

Ricardo nem se trocou, correu para fora com a mesma roupa de trabalho, manchada de graxa e suor. No hospital, o cheiro de desinfetante e o zumbido das luzes fluorescentes o deixaram enjoado. Um médico com um rosto cansado o levou para uma sala pequena e sem janelas. As palavras do médico eram suaves, mas cada uma delas era um golpe. "Grave", "traumatismo craniano", "fizemos tudo o que podíamos". A frase final pairou no ar, pesada e definitiva.

"Sinto muito."

O mundo de Ricardo desabou. Ele se sentou em uma cadeira de plástico, o corpo tremendo, a mente vazia. Ele precisava falar com Sofia, sua esposa. Ela precisava saber. Ele puxou o celular do bolso com as mãos trêmulas. O número dela estava no topo dos contatos recentes. Ele ligou.

Caixa postal.

Ele tentou de novo, o coração martelando contra as costelas. A cada toque, sua ansiedade crescia, se transformando em um nó de pânico em sua garganta.

Caixa postal, de novo.

"Por favor, Sofia, atende", ele sussurrou para o telefone mudo.

Ele ligou uma terceira vez, uma quarta, uma quinta. Nada. Apenas o som zombeteiro da gravação. Onde ela estava? Ela sempre dizia que mantinha o celular perto, para emergências. Isso era uma emergência. O filho deles estava morto.

Uma enfermeira entrou na sala, trazendo um copo d'água. Ela o olhou com pena.

"O senhor quer que eu tente ligar para mais alguém?"

Ricardo balançou a cabeça. Não havia mais ninguém. Havia apenas ele, Sofia e Felipe. E agora, Felipe se fora.

Ele se levantou e caminhou sem rumo pelos corredores brancos. Na sala de espera da emergência, uma grande TV estava ligada em um canal de esportes. Mostrava a final de uma competição de natação juvenil. A multidão gritava, a água espirrava. A câmera focou em um jovem atleta, o vencedor, com um sorriso radiante. E então, a câmera se moveu para a plateia, para a mãe orgulhosa.

Era Sofia.

Ela estava lá, de pé, aplaudindo com um fervor que ele não via há anos. Ela usava um vestido elegante, joias que ele nunca tinha visto. Seus cabelos estavam perfeitamente penteados. Ela ria, abraçando um homem ao seu lado, um homem que Ricardo não reconheceu. O jovem atleta, filho do outro homem, correu para eles e os três se abraçaram, uma família feliz e vitoriosa.

Ricardo ficou paralisado. O som da TV se misturou com o zumbido em seus ouvidos. Ali estava sua esposa, celebrando uma vitória luxuosa, vivendo uma vida que ele não conhecia, enquanto o corpo do filho deles esfriava no necrotério a poucos metros de distância.

Ele observou o celular na mão dela. O mesmo celular que ele tentava contatar desesperadamente. Ela o segurava, mas seus olhos estavam fixos na celebração. Ela nem sequer olhou para a tela.

Nesse momento, o telefone de Ricardo tocou. Era um número desconhecido. Ele atendeu.

"Ricardo? É a Sofia. Você me ligou?"

Sua voz era casual, um pouco irritada, como se ele a tivesse interrompido. O barulho da festa ainda estava alto ao fundo.

"Sofia... Onde você está?" sua voz saiu como um arranhão.

"Estou... ocupada. Um evento importante. O que aconteceu? Aconteceu alguma coisa com o aquecedor de novo?"

O aquecedor. Ela estava perguntando sobre o maldito aquecedor quebrado que eles não tinham dinheiro para consertar. O mesmo aquecedor que Felipe prometeu que consertaria assim que recebesse seu pagamento. O pagamento que ele estava indo buscar quando a moto derrapou.

Ricardo sentiu algo se quebrar dentro dele. A dor, o luto, a confusão, tudo se cristalizou em uma única emoção fria e cortante. Raiva. Uma raiva tão profunda que o deixou sem fôlego.

Ele olhou para a imagem dela na TV, sorrindo e acenando, completamente alheia à tragédia que destruiu a vida deles.

Ele não disse nada sobre Felipe. Ele não conseguiu. As palavras não sairiam.

Ele simplesmente desligou o telefone.

Ele se virou e se afastou da TV, cada passo uma decisão. O amor que ele sentia por ela, a confiança que ele depositou nela por vinte anos, tudo se desfez em pó. Naquele corredor de hospital estéril, sob a luz fria das lâmpadas, Ricardo percebeu que não estava apenas de luto por seu filho. Ele estava de luto por sua vida inteira, que ele agora via como uma mentira completa e elaborada. Ele estava sozinho. Completamente sozinho.

            
            

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