A Maldição de Ricardo
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Capítulo 2

A confirmação oficial veio na manhã seguinte, na forma de dois policiais uniformizados batendo em sua porta. Eles falaram em voz baixa e respeitosa, usando frases ensaiadas sobre "identificação do corpo" e "procedimentos". Ricardo ouviu em silêncio, o rosto sem expressão. A notícia não era nova, mas a formalidade dela a tornava terrivelmente real, um fato burocrático, inescapável.

Assim que os policiais saíram, a força que o mantinha de pé se esvaiu. Ele correu para o pequeno banheiro, curvando-se sobre o vaso sanitário, e vomitou violentamente. Não havia nada em seu estômago, apenas bile amarga que queimava sua garganta. Seu corpo inteiro se contorcia em espasmos de dor e luto, uma reação física à agonia que sua mente não conseguia mais processar. Ele ficou ali, apoiado na parede fria do banheiro, o suor escorrendo por sua testa, o som de sua própria respiração ofegante preenchendo o silêncio da casa.

Ele se arrastou para a sala de estar, o apartamento parecendo vasto e vazio sem a presença de Felipe. O lugar de Felipe na mesa de jantar, a cadeira onde ele se sentava para estudar, o cheiro fraco de seu xampu no ar. Cada detalhe era uma tortura. Ele ligou a TV, sem pensar, buscando qualquer ruído para abafar o silêncio.

E lá estava ela de novo.

Uma reprise do noticiário esportivo da noite anterior. A imagem de Sofia, radiante, preencheu a tela. Ela estava sendo entrevistada, ao lado do ex-namorado, Marcos, e do filho dele, Lucas.

"É um sentimento indescritível", dizia Sofia para a câmera, os olhos brilhando. "Ver todo o sacrifício valer a pena. Lucas é um campeão nato, e nós sempre soubemos que ele chegaria lá. Demos a ele todo o apoio necessário."

"Nós". "Todo o apoio necessário".

As palavras ecoaram na sala vazia. O "apoio" que ela mencionava era o dinheiro que Ricardo ganhava trabalhando em turnos duplos, o dinheiro que Felipe ganhava fazendo entregas perigosas em uma moto velha. O "sacrifício" não era dela, era deles. Era o sacrifício de Felipe, que trocou suas noites de estudo por um capacete e uma mochila de entregas para que sua mãe pudesse financiar os sonhos de outro garoto.

A ironia era tão cruel, tão grotesca, que Ricardo sentiu o ar faltar em seus pulmões. Ele olhou para a foto de Felipe na estante, um sorriso jovem e esperançoso congelado no tempo. Ao lado, uma foto de casamento, ele e Sofia, vinte anos mais jovens, cheios de promessas. Uma mentira. Tudo uma mentira.

A dor em seu peito se transformou em uma fúria cega. Ele se levantou, cambaleando, e agarrou o objeto mais próximo, um velho troféu de um concurso de redação que Felipe ganhou na escola. Ele o ergueu acima da cabeça e o atirou contra a parede com toda a sua força. O plástico se estilhaçou, o som ecoando pelo apartamento. Mas não foi o suficiente. Ele pegou uma cadeira e a quebrou contra a mesa. Ele rasgou as cortinas que Sofia havia costurado, dizendo que não tinham dinheiro para comprar novas.

Ele estava destruindo sua casa, sua vida, mas não importava. Já estava tudo em ruínas.

Foi em meio a essa destruição que ele encontrou. No fundo do armário de Sofia, escondida sob um monte de roupas velhas e surradas que ela usava em casa, havia uma caixa. Uma caixa de sapatos que ele nunca tinha visto. Curioso, ele a abriu.

Dentro, não havia sapatos. Havia extratos bancários. Dezenas deles. De uma conta que ele não sabia que existia. Os extratos mostravam um saldo com tantos zeros que ele mal conseguia contar. Mostravam depósitos regulares de grandes quantias de dinheiro. E mostravam transferências. Transferências constantes e vultosas para outra conta. Uma conta em nome de Marcos Oliveira.

Havia também recibos. Recibos de roupas de grife, joias caras, mensalidades de um clube exclusivo, pagamentos de um treinador de natação de elite. Tudo para Marcos e Lucas. As datas coincidiam com as vezes em que Sofia dizia que eles precisavam economizar, que as coisas estavam difíceis. As vezes em que Felipe decidiu arranjar mais um emprego de meio período.

Ricardo caiu de joelhos, os papéis espalhados ao seu redor como folhas mortas. A verdade era pior do que ele imaginava. Não era negligência. Não era um erro. Foi uma fraude. Uma traição longa, calculada e cruel. Sofia não era apenas uma mãe ausente. Ela era a arquiteta da pobreza deles. Ela os mantinha em uma vida de dificuldades para poder bancar o luxo de outra família. O filho dele não morreu por um acidente trágico. Ele morreu porque sua mãe o usou, o sacrificou, para sustentar uma mentira.

O grito que saiu da garganta de Ricardo não foi humano. Foi o som de uma alma sendo rasgada ao meio.

            
            

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