A voz dela mesma ecoava, repetindo o que Dona Amélia diria se estivesse viva. Mas, ao mesmo tempo, outra parte gritava mais alto: "Não aceite esmola. Não aceite migalhas. Você consegue sozinha."
Parou em frente ao primeiro banco, respirou fundo. O letreiro dourado brilhava como uma promessa. Entrou, ignorando o ar-condicionado gelado que a fez estremecer.
Na fila, Clara revisava os papéis: extratos, recibos, notas fiscais. Tudo organizado, tudo provando que a confeitaria ainda vendia, ainda tinha clientes fiéis. Só precisava de tempo.
Quando finalmente se sentou na frente do gerente, um homem de terno cinza e olhar entediado sentiu o estômago revirar.
- Senhora Clara Martins? - Ele ajeitou os óculos no rosto, folheando as páginas como quem folheia uma revista velha. - Hum... Confeitaria Martins, não é? Uma microempresa individual... vejo aqui que a receita mensal não cobre as dívidas acumuladas.
Clara se endireitou na cadeira, tentando conter a ansiedade.
- Mas tenho fluxo de clientes. Se eu conseguir modernizar a vitrine, fazer uma promoção, pagar fornecedores à vista, posso dobrar as vendas no mês das festas juninas. Eu só preciso de um prazo, um fôlego.
O homem pigarreou, digitou algo no computador. O som das teclas parecia um martelo cravando cada negativa na alma dela.
- Senhora Clara, infelizmente seu score de crédito é muito baixo. Não há garantias reais além do próprio ponto comercial, que, pelo que vejo, pertence à construtora Albuquerque -ele levantou os olhos, sem emoção-. Isso limita muito as opções.
Ela apertou os lábios, tentando segurar a raiva. Claro que o nome Albuquerque estaria ali, como uma sombra atrás de cada porta fechada.
- O senhor não pode abrir uma exceção? -insistiu, quase num sussurro-. Eu trabalho duro, pago cada fornecedor. Se eu perder o ponto, não tenho como pagar nem o que devo.
- Eu entendo sua situação -disse ele, num tom automático-. Mas não podemos ajudar no momento.
Clara saiu do banco com as pernas bambas. O sol já começava a descer, pintando a avenida de laranja. O suor escorria pela nuca, mas o frio vinha de dentro.
Ela respirou fundo, ignorou o aperto no peito, e seguiu para a segunda agência, do outro lado da rua. Mais fila, mais papéis, mais olhares de pena. Mais uma negativa.
Quando saiu dali, o telefone vibrou. Uma mensagem de voz. Era Luísa.
"Amiga, me liga assim que ouvir isso! Tô preocupada, ouvi dizer que você recebeu uma notificação. Vem aqui em casa hoje à noite, vamos conversar, tá bom? Eu te ajudo no que precisar!"
Clara apertou o celular na mão. Luísa era sua amiga desde o colégio, daquelas que sabiam todos os seus segredos, inclusive os que ela queria enterrar. O convite era genuíno - Luísa sempre fora generosa. Rica, casada com um advogado que vivia oferecendo "empréstimos sem juros". Mas Clara conhecia o gosto amargo que vinha junto com cada favor.
Guardou o celular no bolso, sem responder. Não ia se humilhar. Não ia dever favores que não podia pagar.
Passou num terceiro banco antes de voltar para o ponto de ônibus. O gerente, mais simpático que os outros, chegou a oferecer um café. Sorriu enquanto negava o crédito com a mesma leveza com que comentaria a previsão do tempo.
Quando finalmente se sentou no banco de madeira da parada, Clara sentiu as pernas formigarem. As sacolas plásticas com insumos para o dia seguinte estavam pesadas em seu colo. Precisava continuar assando, vendendo, sorrindo. O mundo não ia parar porque ela estava exausta.
O celular vibrou de novo. Outra mensagem, agora de Ana, a prima distante que soube da dívida.
"Prima, vem morar comigo um tempo, fecha essa confeitaria! É só um lugar velho, você ainda é nova, consegue emprego em qualquer padaria. Você não precisa se matar por isso!"
Clara sentiu o sangue ferver. Como explicar para eles que não era só um lugar velho? Era a única coisa que ainda a ligava à avó, ao pai, à infância que ainda fazia sentido.
Olhou o céu, onde o sol começava a sumir atrás dos prédios altos que engoliam a cidade.
"Se eu não lutar por isso, não tenho mais nada."
Passou a mão no rosto, tentando afastar as lágrimas. Abriu a bolsa, tirou um bloquinho amarelado onde anotava os pedidos. Amanhã tinha dois bolos de aniversário, quatro dúzias de brigadeiros e uma fornada de pão de mel para a escola do bairro. Trabalho. Sobrevivência.
De repente, lembrou-se de algo que odiava lembrar. Uma noite, anos atrás, Enzo Albuquerque encostado na porta da confeitaria, ainda de terno, sorriso de canto de boca.
"Você não precisa se matar tanto, Clarinha. Vem comigo. Eu resolvo tudo."
Ela disse não. Orgulho, vergonha. Talvez medo. E agora, anos depois, lá estava ele, dono do prédio, dono da rua, dono de um pedaço do destino dela.
Sentiu o peito apertar. Será que algum dia teria que engolir tudo o que engoliu para bater na porta dele? Não. Não podia. Não ainda.
O ônibus chegou, soltando fumaça preta no rosto dela. Subiu devagar, pagou a passagem com as moedas contadas, sentou perto da janela.
Enquanto o veículo se afastava, Clara viu o reflexo de si mesma no vidro sujo: cabelos presos num coque improvisado, olheiras profundas, a testa marcada pela preocupação. Mas no fundo dos olhos, uma faísca. Pequena, mas viva.
"Não importa quantos bancos digam não. Eu vou dar um jeito. Nem que eu tenha que vender brigadeiro na porta do prédio do Enzo Albuquerque."
E, pela primeira vez naquele dia, um sorriso, pequeno, quase imperceptível, se formou em seus lábios. Ainda tinha luta. E enquanto houvesse luta, havia esperança.