E lá estava eu. Ou melhor, o que restou de mim. Meu rosto estava pálido, com uma serenidade que eu não sentia em vida há muito tempo. Havia um pequeno corte na minha bochecha que eu nem tinha notado antes. Um arranhão. Irônico.
Leonardo engasgou. Um som horrível, rasgado, que veio do fundo de sua alma. Ele estendeu a mão, tremendo, como se fosse tocar meu rosto, mas parou a centímetros de distância. Ele não tinha o direito. E ele sabia disso.
Ele ficou ali por uma eternidade, apenas olhando. Eu flutuei ao lado dele, observando seu rosto. A negação tinha dado lugar a um horror absoluto. A realidade estava afundando, cruel e inegável.
Depois do necrotério, ele dirigiu sem rumo por horas. Eu estava no banco do passageiro fantasma, o mesmo lugar onde eu estava sentada horas antes do acidente, rindo de uma piada que ele contou. A memória era tão vívida que doeu.
Finalmente, ele parou na frente do nosso apartamento. Ele ficou no carro por um longo tempo, olhando para a janela iluminada. As luzes estavam acesas. Minha irmã, Laura, estava lá. Eu podia sentir sua presença, sua dor.
Ele subiu as escadas lentamente, como um homem velho. Ele parou na porta, respirou fundo e bateu.
Laura abriu. Seus olhos estavam vermelhos e inchados, mas sua expressão era dura como pedra quando o viu.
"O que você quer?", ela perguntou, a voz baixa e cheia de veneno.
"Laura... eu... eu sinto muito...", ele começou.
"Você sente muito?", ela riu, um som sem alegria. "Você a deixou morrer, Leonardo. Você a deixou sozinha para morrer em um corredor de hospital enquanto cuidava da sua amiguinha."
"Eu não sabia...", ele sussurrou, a voz embargada.
"Não sabia? Ela não era sua namorada? Você não a conhecia? Não sabia que ela nunca reclamava, que ela aguentava a dor em silêncio? Você, de todas as pessoas, deveria ter sabido que algo estava errado!"
Cada palavra dela era um golpe, e eu vibrei com uma satisfação feroz. Laura sempre me entendeu. Ela sempre viu através da fachada de Leonardo.
Ele tentou passar por ela para entrar no apartamento.
"Eu preciso ver sua mãe..."
"Não", Laura o bloqueou, colocando a mão em seu peito. "Minha mãe não quer te ver. Ninguém aqui quer te ver. Fique longe da nossa família. Fique longe da memória da minha irmã."
Ela o empurrou para fora e bateu a porta na cara dele. O som ecoou no corredor silencioso. Leonardo ficou parado ali, a mão ainda levantada, como se estivesse batendo em uma porta que nunca mais se abriria para ele.
Ele se virou e desceu as escadas, derrotado. Ele voltou para o carro e pegou o celular. Ele ligou para a única pessoa que restava.
"Bianca?", ele disse quando ela atendeu. Sua voz era um destroço. "Ela... ela se foi, Bianca. A Sofia morreu."
Eu flutuei para perto, ouvindo a resposta dela. A voz de Bianca no telefone era um sussurro de choque ensaiado.
"Oh, meu Deus, Leo... não pode ser... eu não acredito... coitadinha... como isso aconteceu?"
"Hemorragia interna", ele disse, a voz vazia. "Eles disseram que... que eu deveria ter percebido."
"Não!", a voz de Bianca foi rápida, afiada. "Não diga isso, Leo. A culpa não é sua. Como você poderia saber? Ela mesma disse que estava bem! Eu ouvi! Ela disse 'Estou bem, Leo, não se preocupe comigo'."
Uma mentira descarada. Uma manipulação cruel. E o pior de tudo? Ele acreditou. Eu vi o alívio lutar com a dor em seu rosto. Ele queria desesperadamente acreditar nela. Ele precisava de uma desculpa, de uma saída para a sua culpa esmagadora.
"Ela... ela disse isso?", ele perguntou, a voz cheia de uma esperança patética.
"Sim, querido. Eu juro que ouvi. Ela estava preocupada comigo, com o meu braço. Ela é tão altruísta... era. Ela era tão altruísta. Ela não iria querer que você se culpasse."
Era uma obra-prima de manipulação. Em uma única conversa, ela o absolveu, se pintou como a vítima que Sofia se sacrificou para proteger, e reforçou a imagem de Sofia como a mártir silenciosa.
"Onde você está?", ele perguntou.
"Em casa. Mamãe veio me buscar no hospital. Eu estou tão assustada, Leo."
"Estou indo para aí", ele disse, e ligou o carro.
Eu observei enquanto ele se afastava, correndo para o conforto de uma mentira em vez de enfrentar a verdade de sua falha. Ele estava escolhendo o caminho mais fácil, o caminho que Bianca estava pavimentando para ele.
Mas eu estaria lá, em cada esquina daquele caminho, para lembrá-lo do que ele realmente fez. A culpa era uma semente. Bianca podia cobri-la com a terra fofa de suas mentiras, mas eu seria a chuva e o sol que a fariam germinar e crescer até que suas raízes quebrassem tudo ao seu redor.
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