Sistematicamente, comecei a apagá-lo. Juntei todas as fotos nossas, todos os presentes que ele já me deu, cada peça de roupa dele deixada no armário, e enfiei tudo em sacos de lixo pretos. Foi uma limpeza. Um exorcismo amargo.
A cada item, uma memória surgia. Uma viagem de esqui para Campos do Jordão, onde ele sorriu para a câmera, mas reclamou do frio no momento em que ficamos sozinhos. Nosso jantar de aniversário, onde ele passou o tempo todo mandando mensagens por baixo da mesa. Eram todos momentos ocos que eu havia tentado desesperadamente preencher com meu próprio amor.
Encontrei a foto emoldurada do nosso dia de "casamento". Estávamos sob um carvalho, o braço dele ao meu redor, ambos sorrindo. O sorriso dele não alcançava os olhos. Eu sempre soube disso, no fundo. Só não queria ver. Quebrei a moldura na beirada do balcão da cozinha. O vidro se estilhaçou, e eu joguei os cacos no lixo.
A porta da frente se abriu com um estrondo. Heitor estava lá, o cabelo desgrenhado, os olhos selvagens. Ele não parecia em nada com o herói calmo e controlado da TV.
"Alice! Por que você não estava atendendo o telefone?", ele exigiu, caminhando em minha direção.
Ele olhou ao redor da sala, para as paredes nuas e os sacos de lixo cheios da nossa vida juntos. O pânico brilhou em seus olhos.
"O que você está fazendo? Onde estão todas as nossas fotos?"
Eu não precisava atender suas ligações porque não havia mais nada a dizer. Ele já tinha dito tudo quando escolheu Bárbara. Ele já tinha dito tudo com a certidão fraudulenta. Ele já tinha dito tudo quando desprezou nosso filho morto.
"Por que você saiu do hospital?", ele perguntou, a voz uma mistura de raiva e medo. Ele agarrou meu braço, seu aperto forte. "Eu estava apavorado. Pensei que algo tivesse acontecido com você."
Seu toque era repulsivo. Parecia ser manuseada por um estranho, um perigoso.
"Me solta, Heitor", eu disse, minha voz perigosamente calma.
Ele notou a moldura quebrada no chão. Seu rosto endureceu. "Entendi. Você está fazendo birra. Está com raiva e está destruindo as coisas."
Ele balançou a cabeça, sua expressão se tornando uma de pena condescendente. "Eu te disse, Alice. A situação era complexa. Salvar a Bárbara era uma questão de segurança nacional. O conhecimento dela é inestimável."
"Pare de falar", eu disse, interrompendo seu fluxo de mentiras egoístas.
Ele não ouviu. Ele nunca ouvia.
"Eu sei que é difícil para você entender, mas..."
Eu tinha sido uma tola, acreditando em suas grandes declarações e promessas vazias. Eu havia construído minha vida sobre uma base de mentiras, e agora toda a estrutura havia desmoronado.
"Você mudou, Alice", disse ele, a voz carregada de acusação. "Você costumava ser tão compreensiva."
Eu não mudei, pensei. Eu acordei.
"Eu te amo", disse ele, a voz caindo para um sussurro desesperado. "Eu não posso viver sem você, Alice. Não faça isso."
Ele me puxou para seus braços, seu abraço sufocante. Ele estava tentando usar a força, usar sua presença física para me dominar, como se isso pudesse apagar os anos de engano. Ele me carregou para o quarto e me jogou na cama.
"Você não vai me deixar", ele rosnou, me prendendo. Ele usou uma de suas gravatas para amarrar meus pulsos na cabeceira da cama. A seda era uma zombaria cruel da intimidade.
Eu o encarei, meu choque se transformando em uma raiva fria e ardente. "Você está louco?"
"Eu sou louco sem você", disse ele, os olhos selvagens. Ele estava tentando enquadrar sua violência como paixão, como um testemunho de seu amor. Era apenas mais uma manipulação.
Ele se inclinou e me beijou. Foi um beijo brutal, punitivo, cheio de raiva e possessão. Meu estômago revirou. Uma onda de náusea me invadiu. Este homem, que eu uma vez amei com todo o meu ser, agora parecia uma violação.
Virei a cabeça e mordi seu lábio, com força. Ele recuou, uma mão voando para a boca, uma gota de sangue em seu queixo.
"Saia!", gritei, o som rasgando minha garganta. "Saia da minha casa!"
O telefone dele tocou. Ele olhou para a tela, e sua expressão mudou. A selvageria foi substituída por uma intensidade familiar e focada. Era Bárbara. Era sempre Bárbara.
"Eu tenho que atender", disse ele, a voz novamente calma. Ele saiu do quarto, deixando-me amarrada na cama. "Eu volto. Nós vamos resolver isso."
Ele saiu. A porta da frente se fechou. A casa ficou em silêncio.
Ele não voltou.
Eu estava sozinha, amarrada a uma cama em uma casa cheia de fantasmas e mentiras. Lutei contra a gravata, mas ele havia dado o nó com precisão de especialista. Só apertava mais, cortando meus pulsos.
Minha lateral, onde a bala havia me atravessado, latejava com uma dor surda e persistente. Uma febre estava começando a se instalar. A fome roía meu estômago.
Horas se passaram. O sol se pôs, mergulhando o quarto na escuridão. Ele me deixou aqui. Ele a escolheu, de novo, e me deixou para sofrer. A promessa de "resolver isso" era apenas mais uma frase vazia, mais uma mentira para me manter calma enquanto ele corria para o lado dela.
Encolhi-me em uma bola, a dor na minha lateral se aguçando a cada movimento. Fome, dor e um desespero arrepiante se instalaram sobre mim. Ele não apenas me traiu. Ele me abandonou, completa e totalmente.