Mamãe estava estranha. Os olhos, sempre tão doces, estavam arregalados demais, como se vissem algo que Lyra não conseguia enxergar. O sorriso nos lábios não parecia de verdade; era como um desenho malfeito. As mãos dela tremiam quando seguravam a barra do vestido.
"Lynn... mamãe está bem?", pensou Lyra, chamando pela voz que vivia em sua mente.
Lynn sempre estava lá. Diferente das amigas da escola, Millie e Amber, que iam para casa quando escurecia, Lynn morava dentro dela. Falava baixinho, dava conselhos e às vezes dizia coisas que a faziam se sentir especial.
A primeira vez que contara sobre Lynn, mamãe ficara preocupada. Levou-a até um médico que cheirava a giz e álcool. Ele lhe deu remédios amargos que doíam na barriga e deixavam sua cabeça pesada. Depois disso, Lynn pediu com firmeza:
"Não conte mais sobre mim. Eles não vão entender. Quando chegar a hora, vou te explicar. Por enquanto, basta pensar em mim, e eu estarei aqui."
E ela obedecera.
- Ela está com medo... - sussurrou Lynn agora.
Lyra escorregou do sofá, correu até a mãe e agarrou sua mão.
- Mamãe, você está com medo?
O sorriso da mãe aumentou, mas os olhos continuaram tristes. Ela se agachou, ficando na altura da filha.
- Nós vamos fazer uma viagem, meu amor.
Lyra deu um pulo de alegria. Adorava viajar!
- Pra onde, mamãe?
- Para casa.
Lyra franziu a testa.
- Mas a gente já tá em casa... não tá?
A mãe a puxou para um abraço apertado, tão forte que quase doeu. O cheiro dela era de morangos, como sempre, mas havia algo diferente misturado: cheiro de lágrimas.
- Aqui não é mais nossa casa, querida.
- Mas eu gosto daqui... e tem a Millie e a Amber... - disse, a voz baixinha.
- Eu sei, meu amor. - A mãe acariciou seus cabelos negros. - Um dia, quando você for maior, vou te explicar melhor. Agora preciso que confie em mim. Pode fazer isso?
Lyra assentiu, mesmo sem entender.
A mãe a pegou no colo, apertando forte, e a levou até o carro. Sentou-a na cadeirinha, puxou o cinto até ouvir o clique.
- Fique quietinha, tá bem? A mamãe vai pegar as malas e já volta.
Lyra balançou a cabeça em concordância. Sempre obediente.
"Algo está errado", murmurou Lynn em sua mente. "Ela tem medo. Eu sinto."
Lyra mordeu o lábio. - Será que tem a ver com o homem de ontem?
A lembrança veio como um pesadelo. Estava quase dormindo quando ouvira mamãe gritar. Levantara pé por pé até o corredor. Um homem pálido estava parado na porta. O sorriso dele era torto, assustador. O cheiro que vinha dele era horrível, tão ruim que o estômago de Lyra embrulhou. Mamãe correu, colocando o corpo na frente dela.
- Volte pra cama, princesa. Eu já subo.
"Vamos, Lyra", sussurrou Lynn dentro dela.
E ela obedeceu, mesmo assustada. Pouco depois, mamãe entrou no quarto, beijou-lhe a testa com mãos geladas e a cobriu.
"O cheiro dele... lembra o cemitério do vovô e da vovó", disse Lynn.
"É mesmo... cheiro horrível", concordou Lyra.
Agora, enquanto mamãe guardava malas no porta-malas, Lyra abraçou o bichinho de pelúcia que levava sempre. Sentia que estavam fugindo, mas não sabia de quê.
O carro seguiu pela estrada escura. As luzes passavam rápidas, o balanço embalava Lyra para o sono. Olhou para a mãe várias vezes, mas o rosto dela estava rígido, como se tivesse esquecido como sorrir.
Queria perguntar de novo para onde iam, mas a voz não saiu. Um silêncio pesado preenchia o carro, quebrado apenas pelo ronco do motor.
O sono finalmente a envolveu, mas de repente, um estrondo rasgou a noite. O silêncio foi estilhaçado. Um clarão. Um barulho ensurdecedor. O carro rodou, os vidros explodiram. O mundo se desfez em dor e fumaça.
Lyra gritou, mas o grito se perdeu.
Quando abriu os olhos, o ar estava pesado, cheio de cheiro de ferro queimado. A cabeça latejava.
- Mamãe! - tossiu.
"Solte o cinto, Lyra", orientou Lynn, firme.
Os dedinhos lutaram contra o fecho até que ele cedeu. Ela tropeçou para fora da cadeirinha, as pernas bambas, lágrimas borrando a visão.
No chão, mamãe estava caída. Os cabelos cheios de vidro, o vestido sujo de sangue.
- Acorda, mamãe! - Lyra sacudiu o braço frio. - Acorda!
Nada.
"Ela se foi, Lyra", murmurou Lynn, triste.
- Não, não! Ela só tá dormindo! Ela ainda não virou estrelinha!
"Agora ela virou."
- Cala a boca, Lynn! - gritou. - Ela já já vai acordar!
Lyra se encolheu ao lado do corpo da mãe, abraçando-a como se pudesse aquecê-la de novo. O tempo escorria devagar, cada segundo mais pesado. O sono ameaçava puxá-la, mas o medo não deixava.
Então vieram vozes. Passos. Homens grandes surgiram da escuridão, os olhos brilhando de um jeito estranho.
O coração dela disparou. Se eles machucassem a mamãe? Não podiam!
"Lyra, cuidado", alertou Lynn.
O peito da menina apertou. Algo diferente começou a crescer dentro dela, quente e feroz. Como se o corpo fosse pequeno demais para tanta energia.
O ar ficou pesado. O mundo girou.
- Não cheguem perto! - tentou gritar, mas o que foi mais rosnado.
A dor não veio como a do machucado no joelho, mas como uma brincadeira ruim que a fazia queimar por dentro. Lyra sentiu uma coceirinha subir pelas costas, mas logo o corpo virou uma fogueira.
Ela ofegou, o estômago chacoalhou como um brinquedo quebrado, e o som de seus ossos se movendo era como o barulho de galhos secos. Ela queria gritar pela mamãe, mas a Lyra que pedia socorro estava sumindo.
Havia só a dor e a pressa de uma coisa nova querendo sair de dentro dela. A mente dela escorregou como areia que cai da mãozinha. Um escuro grande engoliu tudo, e a última coisa que Lyra lembrava era de seus braços e pernas se mexendo sem ela mandar, enquanto algo tomava o lugar dela