Ao deixar a menina adormecida, coberta até o queixo por lençóis limpos, Zane caminhou até o escritório do Alfa - a sala que um dia pertencera a seu pai. A madeira escura, os mapas espalhados e o peso dos livros nas estantes pareciam maiores do que nunca. O assento de couro o recebeu como um trono desconfortável.
Ele suspirou e fez um link mental.
- Tyler. Preciso de você e de seu pai no escritório.
Poucos minutos depois, o som firme de passos ecoou pelo corredor. Tyler foi o primeiro a entrar, alto, loiro, com o mesmo porte orgulhoso de Carson, que o seguia logo atrás. O jovem já carregava a postura de um Beta em ascensão, mesmo que ainda não tivesse as cicatrizes do pai.
Zane não perdeu tempo.
- Precisamos descobrir se a menina tem algum parente vivo. Pelo que ela conseguiu me dizer, nunca conheceu o pai. Cresceu apenas com a mãe - A voz dele saiu grave, marcada pelo cansaço e pela determinação. - Mas precisamos cavar mais fundo. Quero respostas.
Tyler assentiu imediatamente. - Deixe isso conosco, Alfa.
Carson cruzou os braços, avaliando o filho antes de acrescentar: - Vamos seguir todas as pistas possíveis.
A conversa desviou para os assuntos da matilha - patrulhas nas fronteiras, suprimentos de inverno, tensões entre guerreiros jovens e veteranos. Quando o relógio mental de Zane marcava já mais de duas da manhã, ele finalmente os dispensou. O silêncio que ficou no escritório parecia sufocar.
Um banho quente ajudou a aliviar parte da tensão, mas não o suficiente. Zane vestiu apenas uma calça de moletom e deitou-se no colchão macio, permitindo que o peso do corpo o puxasse para baixo. Por um instante, quase acreditou que teria algumas horas de descanso.
Quase.
O sobressalto veio quando um corpo pequeno se enfiou ao lado dele, buscando calor. O cheiro inconfundível de mel e lavanda invadiu suas narinas.
- Hey, pequena... - murmurou com a voz sonolenta. - O que está fazendo aqui?
Lyra fungou, a voz tremendo. - Eu tive um pesadelo... não quero ficar sozinha. Eu vou dormir com você.
Os olhos de Zane se fecharam em resignação. - Está bem, mas apenas hoje, certo?
- Tá bom... - respondeu, já se encolhendo contra o peito dele.
Zane permaneceu acordado até sentir a respiração dela se acalmar, profunda e ritmada. Então, com cuidado, a carregou de volta para a cama da ala médica. O relógio já passava das quatro quando conseguiu voltar para o próprio quarto, caindo outra vez no sono leve e inquieto.
Os dias seguintes passaram como um borrão. A rotina de Alfa raramente lhe dava descanso, mas agora havia o peso extra de cuidar de uma criança traumatizada. Não encontraram parentes. Não havia registros que ligassem Lyra a ninguém além da mãe e dos avós já falecidos.
Mary, companheira de Carson, assumiu parte desse fardo com ternura natural. Cuidava de Lyra como se fosse dela, alimentando-a, penteando seus cabelos negros ondulados e embalando-a quando os pesadelos a deixavam trêmula. As duas criaram um vínculo profundo, e Zane via, com certo alívio, que a menina encontrava em Mary a figura materna que perdera.
Ainda assim, as noites permaneciam complicadas. Quase sempre, Lyra aparecia no quarto de Zane em meio à madrugada. Ele já conhecia o padrão: primeiro o choro abafado, depois o estalar da porta se abrindo e, enfim, o pequeno corpo buscando proteção contra os medos que a assolavam.
Era estranho. Uma criança que deveria ser apenas responsabilidade agora se tornava algo mais: um porto de calma em meio ao caos. Zane não sabia explicar, mas a presença dela suavizava parte das sombras que carregava.
O conselho, no entanto, não via com os mesmos olhos. Mais de uma vez, os anciões insinuaram o destino que aguardava: quando Lyra atingisse a maioridade, deveria ser unida a ele. O Alfa e o lobo branco, juntos, garantiriam prosperidade.
Zane endurecia sempre que ouvia isso. Não permitiria que transformassem uma criança em moeda de poder. Ele prometera a si mesmo que Lyra teria liberdade - o direito de escolher quem queria ser, o como queria viver.
Uma batida na porta arrancou-o dos pensamentos.
- Entre. - Sua voz saiu firme.
Tyler entrou, trazendo a mesma determinação do pai. O jovem já não precisava da presença de Carson para se impor.
- Alfa. - Saudou, inclinando levemente a cabeça.
- Tyler. - Zane devolveu o gesto. - Você tem algo para mim?
Os olhos verdes do Beta brilharam com um misto de triunfo e apreensão. - Acho que conseguimos alguma coisa sobre a menina.
Zane se endireitou na cadeira. - Conte.
Tyler respirou fundo antes de falar. - Melissa Miller. Vinte e nove anos. Foi registrada como desaparecida há cinco anos.
Zane franziu o cenho. - Desaparecida? Você confirmou que é a mãe de Lyra?
- Sim, Alfa. As fotos do painel de desaparecidos não deixam dúvidas. É a mesma mulher.
Um silêncio pesado se instalou.
- Quem registrou o desaparecimento? - perguntou Zane, já sentindo a resposta arder no estômago.
- Os pais dela. - Tyler hesitou um instante antes de continuar. - Eles relataram que Melissa havia iniciado um tratamento experimental nos laboratórios Vitalle.
O nome caiu na sala como um trovão.
- Lorenço Vitalle... - Zane sussurrou, incrédulo.
Tyler apenas assentiu.
Zane sentiu os músculos enrijecerem. Lorenço Vitalle não era apenas um nome. Era um vampiro antigo, conhecido por seu envolvimento em experimentos com sangue humano e Lycan. Um ser que cruzava limites morais sem hesitar.
- Tem mais. - Tyler ajeitou-se, a voz carregando gravidade. - Pouco depois de denunciarem o desaparecimento da filha, os pais de Melissa foram encontrados mortos.
O ar da sala pareceu congelar.
- Como? - Zane exigiu.
- Foram drenados, Zane. - Tyler respondeu sem titubear. - Cada gota de sangue retirada. A polícia fechou o caso como "inconclusivo", mas sabemos o que significa.
Zane cerrou os punhos. - Aquele maldito sugador de sangue...
O Beta concordou. - Parece óbvio. Ele os matou para encobrir alguma coisa.
- Mas por quê? - Zane murmurou, levantando-se e começando a andar de um lado para o outro.
Tyler hesitou antes de compartilhar o pensamento. - Só há uma explicação que me parece plausível, Alfa.
Zane parou, virando-se para encará-lo.
- Você acha... que Vitalle sabia que Lyra era um lobo branco?
O silêncio que seguiu foi mais eloquente do que qualquer resposta imediata.
- É a única explicação. - Tyler quebrou por fim o silêncio. - Mas não faz sentido. O que um vampiro ganharia com isso?
Zane massageou as têmporas, sentindo a pressão aumentar. - Não sei. Mas tenho um mau pressentimento.
Zander, seu lobo interior, ecoou em sua mente:
- Se os vampiros estão envolvidos, ela nunca esteve segura. Precisamos protegê-la.
Zane concordou em silêncio. A intuição gritava a mesma coisa. Lyra não era apenas uma órfã perdida. Era peça central em um jogo sombrio que envolvia sangue, poder e segredos enterrados.
E ele jurara protegê-la.
Nem que tivesse que enfrentar os anciões, o conselho, ou até mesmo os vampiros.