Parados perto de uma moto, três garotos observavam a cena. Eu já tinha visto eles na casa da Laís mais cedo, mas nunca tinha gravado direito quem era quem.
O primeiro era impossível de não reparar: alto, pele morena, cabelo preto, barba fechada com cavanhaque e bigode. As tatuagens no braço e no pescoço só reforçavam a cara de mal.
- Ih, Laís, trouxe a Barbie pro morro? - disse ele, com um sorriso debochado. - Aposto que nunca pisou num lugar desses.
Esse só podia ser o Khalil.
Ao lado dele, um pouco mais baixo, mas com o corpo bem definido, estava um garoto de porte médio, ombros largos, tatuagem tomando conta apenas do braço direito. Ele me olhou com curiosidade, mas sem o mesmo tom de deboche.
- Seja bem-vinda, princesa - falou, levantando a mão num cumprimento simpático.
Esse era o Peixe.
O último era o mais alto dos três. Branco, quase um poste, devia ter uns 1,90, cabelo preto, cavanhaque bem aparado. Diferente dos outros, não parecia tão interessado em me julgar - mas o riso fácil mostrava que ele não ia perder a oportunidade de zoar.
Esse era o Tzão.
- Essa é a minha amiga, se comportem - Laís falou, me puxando pra frente. - Gente, essa é a Ananda.
- Princesa nada, Barbie mesmo - Khalil riu, me olhando de cima a baixo. - Deve ser fresca demais, aposto que não sabe nem andar sozinha sem motorista.
Senti meu sangue ferver.
- Você nem me conhece pra sair falando isso.
Ele arqueou uma sobrancelha, provocador.
- Não precisa conhecer muito pra ver. Tá escrito na tua cara.
- Então talvez você precise olhar melhor - rebati, firme, surpreendendo até a mim mesma.
Tzão gargalhou alto.
- Eita, Khalil tomou logo na lata!
Peixe balançou a cabeça, rindo.
- Gostei da Ananda... vai dar trabalho por aqui.
Laís bateu palmas, se divertindo.
- Eu avisei que ela tinha resposta na ponta da língua.
E ali, no meio daquela zoeira, eu percebi que o jogo estava só começando.
Laís não me deu tempo nem de respirar. Assim que as provocações diminuíram, ela já puxava meu braço.
- Bora, bora, bora! - disse animada. - Hoje é sexta, e sexta é dia de barzinho improvisado.
Antes que eu pudesse reclamar, já estávamos atravessando as vielas até parar num espaço aberto, cheio de mesas de plástico coloridas, caixas de som estourando funk e uma caixa de isopor lotada de latinhas. Um cheiro de churrasquinho no espeto tomava conta do ar.
- Senta aí, Barbie - Khalil apontou a cadeira com um sorrisinho torto. - Mas cuidado pra não sujar a roupa de marca.
- Cala a boca, Khalil - Laís retrucou, mas eu já estava me sentindo desafiada.
- Roupa de marca dá pra lavar, língua venenosa não tem sabão que resolva - rebati, arrancando risadas de Peixe e Tzão.
- Essa garota tem resposta! - Tzão gargalhou, batendo na mesa.
Peixe, que já abria uma latinha, me ofereceu.
- Vai, aceita. Aqui todo mundo bebe junto.
- Eu não bebo cerveja - falei, sem pensar.
Silêncio. Quatro pares de olhos em cima de mim.
- Eu sabia! - Khalil explodiu em riso. - Fresquinha confirmada.
- Fresquinha nada, ela só não gosta - Laís me defendeu, mas estava rindo também.
Tentei não dar bandeira e peguei a latinha da mão do Peixe.
- Então hoje eu vou aprender.
Dei um gole rápido, a careta veio automática. A gargalhada deles ecoou pelo beco.
- Tá vendo, Barbie? Aqui cê aprende na marra - Tzão falou.
Depois da zoeira, Khalil bateu na mesa.
- Bora fazer um joguinho. Verdade ou desafio. Sem frescura.
Laís arregalou os olhos.
- Ih, ferrou. Eles adoram usar esse joguinho pra humilhar os outros.
- Relaxa, eu sei jogar - falei, mesmo sem ter certeza.
A garrafa girou. Caiu em mim primeiro.
- Verdade ou desafio? - Khalil perguntou, sorriso malicioso no canto da boca.
Olhei pros três, depois pra Laís.
- Desafio.
Os três trocaram olhares cúmplices.
- Quero ver essa Barbie cantar funk aqui, em pé, no meio do barzinho - disse Khalil, batendo palma e já chamando atenção da galera em volta.
Laís colocou a mão na testa.
- Ah, não...
Meu coração disparou. Funk, no meio daquela galera toda, sendo que eu mal sabia as letras direito. Mas desistir não era opção.
Eu respirei fundo, subi na ponta da cadeira e, do jeito mais desafinado possível, comecei a cantar junto com a batida que saía da caixa de som. A plateia improvisada foi ao delírio, entre vaias e risadas.
Quando terminei, descendo da cadeira quase tropeçando, até Khalil estava batendo palma.
- Tá bom... confesso, não esperava que tivesse coragem.
Sorri, ainda sem fôlego.
- Pois é, às vezes você precisa conhecer melhor as pessoas antes de falar delas.
Peixe ergueu a latinha.
- Brindemos à Barbie mais corajosa do morro.
Todos brindaram, e pela primeira vez naquela noite, eu senti que talvez estivesse começando a caber ali.