- Mais ou menos - respondi, esticando-me na cadeira. - Acho que meu corpo ainda não se acostumou com o barulho do morro... e com o Khalil.
Ela gargalhou.
- Eu te avisei, né? Esse daqui adora testar todo mundo. Mas você se saiu bem ontem. Todo mundo viu que você não é só uma patricinha.
Enquanto tomávamos café, ouvi passos na rua. Era Peixe e Tzão chegando, rindo e jogando conversa fora, como se fossem donos do lugar. Khalil veio por último, sem pressa, aquele jeito que me deixava ao mesmo tempo irritada e curiosa.
- Bom dia - ele disse, com aquele sorriso torto que parecia só dele. - Sobrevivendo à primeira noite?
- Sobrevivendo - respondi, fingindo naturalidade, mas sentindo um frio na barriga. - Você ainda vai me zoar hoje?
- Sempre que der - respondeu, cruzando os braços. - Mas aprendi ontem que você tem coragem... e eu gosto disso.
Peixe e Tzão caíram na gargalhada, e Laís cutucou meu braço.
- Viu? Já começou a integração.
Durante a manhã, fui conhecendo melhor cada canto do morro. As crianças corriam descalças, os cachorros latindo, o cheiro de comida caseira vindo de cada esquina. Fiquei um pouco perdida com tanta gente e barulho, mas Laís me segurava firme, apresentando vizinhos, amigos e comerciantes.
Quando chegamos perto de uma pequena banca de frutas, Khalil me cutucou de leve.
- Então, Barbie, sabe cortar manga? - perguntou, arqueando uma sobrancelha.
- Sei lá... nunca precisei - respondi, desconfortável.
- Então vamos testar - disse ele, pegando uma faca e uma manga. - Se fizer direito, você passa no teste de sobrevivência do morro.
Rimos juntos, enquanto Peixe e Tzão observavam e davam risadinhas. A cada toque do braço dele, meu coração disparava, mas eu mantinha a pose.
Mais tarde, a tarde caiu quente, e fomos sentar em um canto da viela, improvisando cadeiras de plástico de novo. Laís trouxe suco, Peixe e Tzão estavam jogando conversa fora, e Khalil se aproximou, encostando casualmente na parede perto de mim.
- Sabe - começou ele, em tom provocador - ontem eu achei que você fosse só uma Barbie perdida... mas hoje tô vendo que tem mais jogo do que eu imaginava.
Revirei os olhos, tentando não mostrar que o comentário me deixava feliz.
- Que ótimo, então você está me elogiando ou me provocando?
- Um pouco dos dois - respondeu, sorrindo de canto de boca. - Mas não se engane... eu não perco fácil.
A tensão entre nós dois era quase elétrica, e eu percebia os olhares curiosos de Peixe e Tzão, como se eles estivessem se divertindo com a nossa troca de farpas. Laís, por outro lado, sorria, contente de ver que eu estava me soltando, mesmo que fosse com provocação incluída.
O resto da tarde passou rápido. Fui ajudando Laís com algumas tarefas simples - cortar legumes, arrumar a mesa, preparar suco - e mesmo sendo algo pequeno, me sentia estranhamente satisfeita. Pela primeira vez em muito tempo, eu me senti parte de um grupo, e não como alguém deslocada ou deslocada demais para aquele lugar.
Quando o sol começou a se pôr, Khalil se aproximou novamente, com aquele jeito que só ele tinha de me fazer sentir um frio na barriga.
- Tá vendo, Barbie? - disse baixinho, só pra mim ouvir. - Você consegue se enturmar. Mas cuidado... isso só vai te deixar mais interessante.
Sorri, sem saber se aquilo era um aviso ou um desafio.
- Ah, é? Então vou ter que tomar cuidado... com você também.
Ele sorriu de canto, divertido.
- Isso é bom... eu gosto quando alguém consegue me provocar.
E assim, enquanto o céu mudava de laranja para rosa sobre o morro, percebi que a minha vida tinha mudado de vez. Entre risadas, tarefas simples, provocações e olhares carregados de tensão, eu já não era mais só a patricinha de fora... eu estava começando a me tornar Ananda do morro, pronta pra encarar tudo - e todos - que viesse pela frente.