O silêncio dela do outro lado foi imediato.
- O que aconteceu, Ananda? - agora a voz já vinha tensa, assustada.
As lágrimas começaram a descer, mesmo que eu não quisesse.
- O Carlos... ele... - minha voz falhou. - Ele tentou me bater de novo. E hoje... hoje ele me pegou quando eu tentava fugir.
- O quê?! - ela praticamente gritou. - Como assim? Ananda, você tá machucada?
Olhei pros roxos no meu braço. O nó na garganta quase me sufocava.
- Ele me bateu duas vezes, mãe. E hoje... se eu não tivesse corrido, eu não sei... eu não sei se tava viva agora.
Do outro lado da linha, ouvi o choro contido dela.
- Meu Deus do céu... Ananda, me perdoa... eu nunca imaginei... eu juro que não imaginei...
- Eu não quero desculpa, mãe. - minha voz saiu mais firme do que eu esperava. - Eu quero que você não volte pra casa enquanto ele estiver lá. Você entende? Ele pode fazer com você o que fez comigo.
O silêncio dela doeu. Eu quase conseguia ouvir a respiração pesada, o coração dela acelerado.
- Eu vou resolver isso. - disse por fim, decidida. - Eu prometo, filha.
📲 Ligação off
Deixei o celular cair em cima da mesa, as mãos ainda tremendo. Laís me puxou pro colo dela, como se fosse meu porto seguro.
- Tá vendo? - disse baixinho, fazendo carinho no meu cabelo. - Agora começa a tua vida de verdade.
Fechei os olhos e deixei o choro vir de vez, mas não era mais só dor. Era libertação.
Acordei com o som de um funk estourando em algum lugar lá fora. Não era despertador, mas servia. Pisquei os olhos, confusa, até lembrar: eu não estava mais na minha cama de lençóis macios, nem no meu quarto cheirando a perfume importado. Eu estava na casa da Laís, no meio da favela.
Me levantei, ajeitando a blusa amassada, e fui até a cozinha. O cheiro de café recém-passado me guiou até ela. Laís estava de shortinho, mexendo a panela como se nada pudesse abalar o humor dela.
- Dormiu bem, madame? - perguntou com um sorrisinho irônico, colocando duas xícaras na mesa.
- Dormi... - cocei a nuca, ainda meio perdida. - Só que o barulho aqui não deixa ninguém esquecer onde tá, né?
Ela riu.
- Aqui a gente acorda no ritmo, ami. Acostuma.
Depois do café, Laís insistiu em me levar pra dar uma volta. As vielas eram cheias de gente, crianças correndo, vizinhas conversando alto, cheiro de comida misturado com fumaça. Eu tentava fingir naturalidade, mas cada olhar que sentia sobre mim parecia dizer: ela não é daqui.
Na esquina, três caras estavam encostados, rindo e fumando. Quando nos viram, endireitaram as posturas. Laís levantou a mão num cumprimento rápido.
- Esses são os cornos que falei ontem. - murmurou no meu ouvido.
Arqueei a sobrancelha.
- Cornos?
- É, ué. Khalil, Peixe e Tzão.
Eles se aproximaram. O primeiro, Khalil, tinha um sorriso maroto que já me deixou em alerta.
- E aí, Laís? Quem é a princesa?
Revirei os olhos. Princesa? Sério?
- É minha amiga, Ananda. Vai ficar aqui um tempo. - Laís respondeu firme.
Peixe arqueou a sobrancelha, me olhando de cima a baixo.
- A patricinha vai aguentar o morro? Quero só ver.
Cruzei os braços.
- Eu tenho nome, sabia?
Os três riram. Até o grandão, Tzão, deu uma risada grave.
- Gostei. - ele disse. - Não abaixou a cabeça.
- Gostar o quê, Tzão? - Laís já cortou, me puxando pelo braço. - Vocês três, nem ousem.
Eles continuaram rindo enquanto a gente se afastava. Eu ainda sentia os olhares grudados em mim, como se me testassem só por existir ali.
- Você não devia ter respondido. - Laís resmungou. - Aqui cada palavra pode virar zoação.
- Não sou saco de pancada de macho, amiga. - retruquei, sem pensar.
Ela respirou fundo, mas não segurou o sorriso.
- Tá bom, dona Patricinha. Vamos ver até quando segura esse fogo.
E seguimos, lado a lado. Eu tentando me acostumar com o peso daquele novo mundo, e ele já começando a me moldar.