No começo, era tudo perfeito. A família de comercial de margarina. Ele parecia o padrasto dos sonhos: carinhoso, atencioso, me tratava como filha. Mas como dizem, felicidade de pobre dura pouco. Do nada, o homem virou um monstro.
Não culpo minha mãe, ela deixou uma filha nas mãos de alguém que ainda parecia ser o marido ideal. Mas agora... agora eu finalmente estava livre daquela casa maldita.
Peguei o celular e tentei ligar pra Laís enquanto chamava um táxi. Entrei, dei bom dia pro motorista e passei o endereço. O caminho parecia eterno. Quando estávamos quase chegando no morro, liguei de novo. Dessa vez, ela atendeu no terceiro toque.
📲 Ligação
- Ami, o que houve? - a voz dela soou preocupada. - Tava fazendo almoço e meu...
- Me explica como chego na sua casa. Tô na entrada do morro.
- Fica parada na entrada e não fala com ninguém. Tô indo buscar.
📲 Ligação off
Paguei o táxi, e o motorista saiu arrancando sem nem olhar pra trás. Fiquei ali, o silêncio das ruas me apertando o peito. Um silêncio que mais parecia aviso.
Caminhei devagar até a entrada. Ia sentar num batente quando um assobio me fez congelar. Virei a cabeça e vi um grupo de homens armados vindo em minha direção.
As armas reluziam na luz fraca. O coração disparou.
- Quem é você? - um deles perguntou, a voz seca.
Levantei as mãos em rendição, gaguejando algo que nem sei o que foi. Dei um passo pra trás, mas acabei batendo em alguém.
O sujeito atrás de mim segurou firme no meu braço, me puxando contra o corpo dele.
- Vai pra algum lugar? - sussurrou no meu ouvido, a voz grave e ameaçadora.
Um dos outros se aproximou ainda mais e apontou a arma pro meu peito.
- Fala logo quem tu é antes que eu perca a paciência.
Engoli seco, o corpo tremendo. As mãos do cara atrás de mim apertavam meu braço com força, quase me prendendo de vez.
E foi aí que a voz da Laís cortou o ar:
- PEIXE! - gritou. - Ela é minha amiga!
Alívio. Instantâneo. Os caras abaixaram as armas, e até o que estava me segurando soltou devagar, ainda desconfiado.
Laís veio correndo, me puxou pros braços dela como se quisesse me esconder do mundo.
- Você tá bem? Eles te machucaram? - perguntou, os olhos marejados.
Balancei a cabeça, ainda sem fôlego.
O tal do Peixe ergueu o queixo, meio sem graça.
- Quer uma água, mina?
- Ela não quer nada, Peixe! - Laís cortou, furiosa.
Ele ergueu as mãos em rendição, rindo.
- Calma, pô. Sem maldade.
- Obrigada... - murmurei, a voz falhando.
E só então Laís me puxou dali, sem olhar pra trás.
Laís não soltava meu braço, como se tivesse medo de que eu sumisse dali em um segundo. Fomos caminhando rápido pelas vielas do morro, o coração ainda acelerado no meu peito. Eu tentava prestar atenção no caminho, mas meus olhos só viam flashes: as armas, o rosto sério dos caras, a mão dura me segurando.
- O que foi dessa vez, ami? - Laís perguntou baixinho, quase sem olhar pra mim, como se tivesse medo da resposta.
- Meu padrasto... de novo. - respirei fundo. - Planejei fugir, achei que ele tava dormindo. Mas fiz barulho na janela. Ele me pegou no flagra e tentou me bater. - mostrei os roxos no braço, a pele marcada como prova. - Se eu tivesse ficado, não sei se estaria viva agora. Só consegui escapar porque chutei ele no saco e corri.
Laís apertou minha mão com mais força.
- Já ligou pra tua mãe?
- Nem pensei nisso, foi tudo muito rápido.
- Então liga logo. Esse desgraçado não pode ficar solto, nem perto dela.
Assenti, engolindo o choro que insistia em subir. Eu não queria desmoronar ali, na frente de todo mundo.
Ela abriu o portão de casa e me puxou pra dentro, fechando atrás de nós como se fosse a barreira final contra o mundo lá fora. Suspirei, finalmente sentindo o peso sair das costas.
Laís virou pra mim e, do nada, abriu um sorriso.
- Lembra quando a gente sonhava em morar juntas?
Sorri de volta, mesmo cansada, mesmo quebrada.
- E se a gente tentasse agora?
- Eu quero! - falamos juntas, e a risada saiu leve, como se limpasse todo o medo que eu carregava.
Ela apontou pra cozinha.
- Fiz lasanha.
- Mentira! - arregalei os olhos.
O cheiro maravilhoso tomou minhas narinas, aquecendo o vazio que eu sentia por dentro. Corri atrás dela e vi a forma em cima da mesa.
- Isso tudo é pra mim?
- Claro que não, sua safada. - ela riu. - Os cornos daqui me obrigaram a cozinhar.
- Cornos?
- Dois amigos meus, o Tico e o Teco.
- Se forem bonitos que nem aqueles que me pararam lá embaixo, pode mandar vir.
- Safada! - gargalhou, e eu gargalhei junto.
Enquanto ajudava ela na cozinha, entre cheiro de comida e fofoca, eu percebi: pela primeira vez em muito tempo, eu conseguia respirar. Eu não era mais prisioneira daquela casa, nem daquelas mãos violentas.
Eu era livre. E ninguém ia tirar isso de mim.