É como se cada recuo fosse uma derrota pessoal. Essa teimosia, essa vontade incessante de mostrar que posso ir mais longe... às vezes me cega.
Mas, como Amber disse: preciso recomeçar.
Vou dormir tarde da noite. Viro de um lado para o outro até, finalmente, pegar no sono.
Às sete da manhã, o despertador toca.
Estico o braço, tateando a mesinha ao lado da cama em busca do aparelho que insiste em me arrancar do sono.
Quando finalmente o encontro, ainda com metade do rosto enterrado no travesseiro, abro um olho com dificuldade e, com satisfação, pressiono o botão vermelho que encerra aquele som irritante.
Enfim... silêncio.
Levanto-me com relutância. Meus olhos estão pesados, e uma leve dor de cabeça ameaça estragar o dia. Pelo menos o estômago parece em paz.
Caminho até o banheiro, já me livrando da roupa pelo caminho.
Entro no box e ligo o chuveiro.
A água fria despenca sobre minha cabeça, arrancando um suspiro trêmulo. Cada gota desperta um pedaço adormecido do meu corpo. O arrepio percorre minha pele e, por um instante, sinto como se estivesse voltando à vida.
Fico ali mais do que o necessário, deixando a água levar minhas lembranças desconfortáveis - entrevistas frustradas, meses de estresse, a incerteza do que vem pela frente.
Por fim, ajusto o registro para morno e termino o banho.
Vinte minutos depois, estou diante do espelho, cabelo enrolado na toalha, escovando os dentes e massageando o rosto com a skincare.
Cada passo da rotina é uma tentativa de impor ordem ao caos da minha mente.
Sigo para a cozinha e preparo o café.
Não vivo sem café.
Café é vida.
Mesmo com a gastrite, essa é uma tradição que me recuso a abandonar.
Faço torradas e ovos mexidos. Arrumo a mesa - só para mim - e tomo o café na companhia do silêncio.
Depois da nossa conversa de ontem, Amber foi para a casa do "investimento" dela. Hoje é domingo. Provavelmente só volta à noite... ou talvez nem volte.
Esse "investimento" está durando mais do que os outros. Mas, se tratando de Amber White, tudo pode mudar em questão de minutos.
A melodia de Per Amore, de Andrea Bocelli, ecoa pelo apartamento vazio.
- Quem é que liga às oito e trinta e cinco da manhã de um domingo? - resmungo, irritada.
- Alô? - atendo com a voz arrastada.
- Alô, Claire? - uma voz masculina soa do outro lado.
- E quem mais seria? - respondo sem disfarçar o mau humor.
- Nossa! Que meiga você está hoje,
Clarissa. - Ele ri. - Está naqueles dias?
Reviro os olhos, mas sorrio de leve. Ele sempre dizia isso quando eu estava mal-humorada.
Como se tivesse levado um choque, encaro o calendário na parede.
É... realmente está perto.
- Não, não estou. - Tento suavizar o tom. - Só não tive uma boa semana.
- Ainda não conseguiu emprego?
Suspiro.
- Escuta, Claire, não quero me intrometer, mas talvez você devesse considerar cargos menores... ou até outras áreas. Administração é uma área ampla, cheia de possibilidades. Você só precisa se permitir explorar.
Reviro os olhos. Aquilo de novo... em menos de vinte e quatro horas.
- É, eu sei. - Minha voz sai seca. - Vou enviar currículo para cargos menores.
Um nó aperta minha garganta. As palavras "cargos menores" soam como cacos de vidro na boca. Admitir isso é mais doloroso do que eu gostaria.
- Mas qual é o motivo da ligação? - tento mudar de assunto.
- Os esboços que te mandei. O que achou?
Ah, os esboços.
Sou leitora beta: leio textos antes de publicados, faço críticas e sugestões. Ele é escritor, mas usa um pseudônimo feminino ridículo. Para minha surpresa, vende bem os livros digitais.
- Bem... você tá começando na fantasia, mas não precisa exagerar tanto nos devaneios. - Seguro uma risada. - Ainda estou tentando imaginar um leão com barbatanas, quatro chifres e olhos de... abelha.
- Eu estava inspirado - ele se defende.
- Inspirado ou febril? - provoco, rindo.
- Vai se ferrar... - diz, mas posso sentir que está sorrindo.
- Escuta, a ideia é boa, mas precisa rever as criaturas místicas. Tem que ter equilíbrio. Eu imprimi os capítulos, fiz anotações e vou digitalizar para te mandar.
- Perfeito. - Ele suspira, rendido. - Ah, Claire...
- O quê?
- Você vai conseguir!
A frase me pega de surpresa. Simples, mas dita com tanta convicção que quase me faz acreditar também.
- Um beijo de esquimó - completa ele, rindo.
Fecho os olhos e sorrio, mesmo sabendo que ele não pode ver.
- Um beijo de esquimó - repito.
- Tchau, Clarissa.
- Tchau.
Desligo e fico olhando para a tela apagada do celular. Só ele consegue me arrancar um sorriso mesmo nos dias ruins.
🌹
O restante da manhã passa comigo no sofá, vasculhando sites de vagas e enviando currículos. Só percebo o tempo quando meu estômago se revira.
- Meu Deus! Já é meio-dia!
Esfrego o rosto, tentando afastar o cansaço.
Vou até a cozinha e abro a geladeira retrô vermelha. Lá está a travessa com o resto da lasanha de ontem.
- Bem... vai ser isso mesmo.
Coloco no micro-ondas e arrumo a mesa com cuidado, mesmo sendo só para mim. Coloco o prato no centro, dobro o guardanapo ao lado... e suspiro.
Encosto na cadeira e encaro a comida diante de mim.
O cheiro da lasanha toma o ar, mas não me desperta fome.
Passo o garfo distraidamente pela borda do prato, mexendo no molho endurecido.
- Mesa para um, por favor - murmuro, sentindo o peso da frase se espalhar pelo apartamento vazio.
Silêncio.
E ele parece mais pesado do que nunca.