Perséfone sustentou o olhar dele por um instante, mas algo dentro de si recuou ao lembrar do bilhete que tinha colocado no caderno de Ícaro no dia anterior.
- Tenho! - Perséfone deu de ombros, evasiva.
Apolo bufou de leve, um som seco que mesclava incredulidade e frustração. Passou a mão pelos cabelos como se tentasse conter a própria impaciência.
- Então, por que ela parecia desconfortável ao sair dessa casa? - A pergunta veio fria, precisa, como uma flecha.
Perséfone apertou os dedos contra a palma. O medo de perder o filho novamente era tão real quanto o chão sob os pés.
- Deve ser porque você interrompeu a aula e dispensou a professora antes do horário - Perséfone sussurrou, com um esforço visível para manter o controle.
Os olhos de Apolo se estreitaram. Havia algo em sua expressão que misturava lucidez e cansaço. Como se ele enxergasse além da máscara cuidadosamente colocada sobre o rosto dela.
- A culpa é toda sua! - Olhando para Perséfone, ele acusou sem dó. - Você mima demais o meu filho.
- Ícaro não precisa de carinho. Precisa de estrutura. - Rebateu, cruzando os braços sobre o peito. A bengala repousou encostada à perna.
Ela se virou por completo, enfim. O coração batia descompassado.
- Uma coisa não exclui a outra.
Atento a cada expressão da mãe de seu filho, ele a analisava como quem ponderava se valia a pena discutir.
- Não se esqueça do seu lugar, Perséfone. - ressaltou com a mesma frieza habitual.
- Nunca me esqueci. Sempre fui empregada dos Velentzas... e você só se divertiu comigo antes de ficar noivo da modelo que hoje é casada com o seu pai... - Ultrajada, ela cuspiu as palavras sem pensar.
Os olhos dele escureceram. O maxilar dele enrijeceu de imediato.
- Achei que fôssemos adultos o bastante para parar com esse jogo. - Embora a voz dele estivesse calma, trazia uma ameaça implícita. - Se você quer ir embora como fez da última vez, diga logo.
A acusação pairou no ar.
Ela pensou em sair dali, sim. Fantasiou a fuga. Sonhou com um lugar onde pudesse ser apenas mãe. Mas o amor de mãe a impedia de sair daquela casa sem o filho, como Helena fez com Dimitri meses depois que Harry morreu.
- Eu pensei... - começou, com dificuldade - que talvez seja melhor viver em um ambiente mais sossegado.
- O que quer dizer com isso? - Manteve o olhar inquisidor atento em Perséfone.
A aproximação dele foi sutil, mas poderosa. Ele não precisava de altura para intimidar - só o olhar bastava.
- Esta casa tem um ambiente carregado, Apolo... - ela murmurou, com os olhos marejados. - E por mais que eu tente protegê-lo, eu vejo a inquietação do Ícaro. Ele tem medo de você.
O silêncio se instalou com mais força. Apolo a encarou como se cada palavra fosse uma afronta pessoal.
- Você quer levá-lo embora? Quer fugir de novo, Ãh?
- Não é isso - ela tentou interromper, mas Apolo ergueu a mão, mandando-a calar com um gesto contido.
- Foi isso que você fez da última vez. Foi embora e sumiu com meu filho. - Revoltado, ele desabafou. - Fiquei meses te procurando... até que você apareceu depois do acidente. Agora, você quer fugir com meu filho de novo?
Apolo raramente deixava as emoções escaparem, mas naquele momento, elas se esgueiravam por entre as rachaduras da fachada rígida. Perséfone sentiu um nó na garganta.
- Estou tentando proteger e dar um lar seguro ao nosso filho... - murmurou ela, tentando convencê-lo.
Apolo se virou, encarando o jardim novamente. A mandíbula ainda estava trincada enquanto a bengala se firmava ao lado do corpo.
- Amanhã, você não vai ficar na sala enquanto a professora Léa estiver dando aulas para o Ícaro. - Informou num tom exigente. - Seu trabalho é como babá do meu filho... lembre-se disso.
Calado, ele deu meia-volta. Os passos firmes, embora desequilibrados, o levaram para longe. E Perséfone ficou, sozinha, entre o sol poente. Ainda tinha as lembranças vívidas do homem carinhoso e apaixonado que um dia ela amou; mas aquele Apolo já não existia mais.
Dentro da casa, Apolo apoiou-se contra a parede do corredor por um instante, os olhos fechados. A perna doía mais que o normal. Mas não era por isso que o coração pulsava como um tambor velho e maltratado.
Enquanto isso, a voz de Perséfone atravessava os seus pensamentos: "Você esqueceu que ele também é meu filho." Apolo rangeu os dentes ao lembrar.
Poucas horas depois, o céu enegreceu. A casa, cercada por árvores centenárias e colinas silenciosas, mergulhava no escuro pontilhado pelas luzes de parede. No interior, os cômodos estavam mergulhados em um sossego vigiado.
Apolo continuava no escritório.
As luzes estavam reduzidas. A luminária de bronze projetava uma meia-luz sobre a escrivaninha, criando sombras longas e inquietas nas paredes revestidas de estantes.
Sentado em sua poltrona de couro, o corpo reclinado para trás, os olhos fixos na taça de conhaque entre os dedos, ele pensava.
O líquido âmbar girava devagar, refletindo o lustre e os retratos antigos. O aroma do álcool preenchia o ar junto com o cheiro seco dos livros. Tudo ali tinha a marca dele - as molduras austeras, a madeira escura, o silêncio.
Na lareira, as brasas ainda resistiam. O crepitar baixo do fogo era o único som que o acompanhava.
A bengala repousava ao lado da cadeira. A perna esticada, envolta em uma calça cinza impecável, parecia parte de um corpo que não mais lhe pertencia. Apolo a olhava com desprezo - não como se olhasse uma cicatriz, mas um inimigo interno, algo que queria eliminar e não podia.
Tomou um gole da bebida, que desceu como fogo, mas falhou em anestesiar o que ardia por dentro.
No canto da estante, havia uma caixa de madeira pequena. Ele se inclinou. Pegou-a com cautela e deslizou os dedos grandes sobre a tampa lisa antes de abri-la.
Ali dentro, tinha uma pulseira hospitalar, uma chupeta azul desbotada, um par de meias minúsculas. Itens que ele não conseguia jogar fora. Aquelas eram as únicas lembranças do filho que não teve tempo de ver nascer e nem mesmo de participar dos primeiros anos de vida.
A raiva veio rápido, como sempre vinha. Um enjoo quente, amargo, como se a bebida tivesse virado veneno. Apolo apertou os olhos com força, apoiando o antebraço na testa. As imagens voltavam sem convite: o impacto forte, o sangue no volante, o som do metal retorcido da perna para baixo e o silêncio total.
E depois, o som dos aparelhos que o mantinham vivo naquele quarto do hospital e então, quando abriu os olhos, ele a viu chorando no hospital.
Ele não a perdoou, nem por um segundo.
Ao voltar a si, ele recuou o braço, fechando a caixa com força. O estalo seco da tampa ecoou no ambiente. A taça, ainda em sua mão, ameaçou escorregar. Ele a pousou com firmeza sobre a mesa.
Levantou-se, mancando com dificuldade. O corpo já estava exausto. A dor na perna era insistente, latejava junto com a memória. Mas não era por isso que ele andava pela casa à noite. Era porque não conseguia ficar parado.
Pegou a bengala. Caminhou devagar, atravessando o escritório escuro até o elevador.
Chegando ao segundo piso, ele mancou, suportando a dor. Ao passar pelo corredor principal, notou que a porta do quarto de Ícaro estava entreaberta. Parou.
O menino dormia com um dos pés fora da coberta, os cabelos despenteados sobre o travesseiro. A luz noturna projetava estrelinhas no teto, um capricho da mãe. Apolo não entrou. Ficou encostado à parede, observando Ícaro de longe. Por um instante, os olhos suavizaram. Depois, se fecharam devagar.
Ele não era feito para ternuras. Nem para perdão. Aquele amor silencioso que sentia pelo filho era o único que restava intacto. O único que ele deixava existir.
Retrocedeu um passo e então avistou a porta do quarto onde dormia a mulher que ele chamava de babá.
Perséfone só falava com ele quando necessário. Ela não fazia barulho. Não ousava rir. Fazia suas refeições na cozinha e mal olhava dentro de seus olhos.
Se girasse a maçaneta, Apolo sabia que a encontraria deitada, talvez lendo, talvez dormindo. A bengala castigava o chão conforme ele se dirigia até o quarto de Perséfone. Ele estagnou em frente à porta e então apoiou a mão aberta na porta.