Me encarei no espelho. O rosto inchado, as olheiras gritando. Passei água fria no rosto, como quem tenta apagar a noite mal dormida. Escovei os dentes, tirei a roupa e deixei tudo cair no chão sem muito cuidado. Entrei no box e liguei o chuveiro. A água quente caiu como um abraço silencioso. Fechei os olhos e por um instante desejei não sair dali nunca mais.
Depois de uns minutos, me enrolei na toalha e voltei pro quarto. Escolhi a velha calça jeans e a blusinha que minha mãe dizia ser "comportada o suficiente pra ir pra escola". Vesti tudo no automático. Sequei os cabelos, passei um pouco de hidratante e perfume. Era o meu ritual - mesmo que ninguém notasse.
Na cozinha, encontrei minha mãe de costas, tirando o bolo do forno.
- Bom dia, mamãe - falei, me sentando à mesa, tentando soar leve.
- Bom dia, minha querida - ela respondeu, colocando o bolo na minha frente. - Dormiu bem, meu amor?
- Sim, senhora. E a senhora?
Ela só assentiu com a cabeça. Aquele silêncio de costume se instalou entre nós. A gente se amava, mas conversava pouco. Café da manhã em silêncio já era quase tradição por aqui.
Depois, escovei os dentes de novo, peguei meus livros e cadernos e fui pra porta.
- Até mais tarde, mamãe! - gritei antes de sair.
Abaixei a cabeça e segui rua abaixo.
No caminho, como sempre, o cenário era o mesmo. Rodinhas de traficantes em cada esquina. Alguns meninos fumando, rindo alto, olhando tudo ao redor como se fossem donos do mundo. E talvez fossem - daquele pedaço, pelo menos.
De longe, vi Coringa e Petra conversando. Meu estômago revirou. Coringa me encarou por um segundo... e desviou. Mesmo assim, meu corpo gelou. Ele me dava um medo que eu não sabia explicar. Bastava ele olhar, e eu já sentia os pelos do braço arrepiando.
Todo mundo aqui tem medo dele. Ele tem uma fama pesada. Dizem que já matou gente só por olhar torto. E as meninas... as que andam com ele, eu já vi muitas com roxos no corpo, hematomas no rosto. Mesmo assim, continuam indo atrás dele. Algumas dizem que é porque ele dá presentes, comida, dinheiro. Outras, eu acho que já perderam a vontade de se salvar.
Mas eu... eu não consigo entender. Não quero entender. É nojento. Ele trata as mulheres como se fossem descartáveis. Depósito de porra. Só de pensar, sinto ânsia.
Minha mãe sempre me alertou. Sempre. Ela tem medo de eu me envolver, de chamar atenção. Por isso ela me proíbe de usar roupas curtas, até no calor. Diz que aqui, se algum traficante decide que você vai ser dele... não tem mais volta.
"Os homens só querem uma coisa, Helena. Eles te usam e te jogam fora como lixo."
Essa frase dela ecoa em mim desde sempre.
Faltam dois dias pro meu aniversário de dezoito anos... e eu nunca namorei. Nunca beijei. Nada. Nem um selinho. Os meninos daqui nem me olham. Me chamam de santinha do pau oco. E talvez eu seja mesmo. Sempre me mantive na linha. Tenho medo de errar, de cair, de pecar.
Minha mãe diz que Deus castiga. E que o maior pecado é se entregar a um homem antes do casamento. Que mulher que se entrega, perde o valor. Que homem só quer o corpo e vai embora depois.
E se ela tiver razão? E se eu realmente for só isso aos olhos de um homem? Um corpo?
Essa dúvida vive dentro de mim. Junto com o medo. Junto com a vontade de conhecer o mundo lá fora... e com a certeza de que, aqui em cima, no alto do morro, liberdade é só uma palavra bonita que a gente escuta nas novelas.