- Por quê? - sussurrei, entre soluços. - Por que ele teve que fazer isso comigo?
O que eu fiz pra merecer isso?
A culpa me corroía, mesmo sabendo que ela não era minha. Mas ainda assim... eu me sentia quebrada.
Levantei cambaleando e fui até o banheiro. Girei a torneira com raiva, como se a água pudesse lavar mais do que a pele. Entrei de roupa e tudo no box, e me encostei na parede fria. A água descia com força, encharcando meu cabelo, o rosto e o corpo.
Me encolhi ali, no chão gelado, abraçando o próprio corpo. As lágrimas se misturavam à água quente que caía do chuveiro, mas dentro de mim... tudo era frio.
Fechei os olhos, tentando fingir que aquilo era só um pesadelo. Tentando lembrar quem eu era antes... antes dele.
Mas tudo o que eu conseguia sentir era o vazio.
E a pergunta que não saía da minha cabeça: Como é que eu vou sair disso?
Adormeci com aquilo tudo martelando na minha cabeça, como se os pensamentos tivessem unhas e estivessem me arranhando por dentro. Fechei os olhos querendo fugir, implorando pra que tudo desaparecesse, como se apagar a mente fosse possível. Eu só queria dormir. Dormir tão profundamente que acordar não fosse necessário.
Mas o sono não veio de verdade. Meu corpo apagou por exaustão, mas minha alma... minha alma continuou acordada. Sentindo. Revivendo. Morrendo um pouquinho a cada lembrança.
Sonhei com gritos abafados. Com mãos pesadas. Com o som da minha própria respiração tentando escapar de mim.
Acordei assustada.
Ofegante.
Com o coração acelerado e o peito pesado como concreto.
Ouvi a voz da minha mãe do lado de fora do quarto, me chamando com aquele tom habitual de manhã, cheio de amor e rotina. Um contraste cruel com o caos dentro de mim.
ㅡ Filha, tá na hora de acordar!
Mas eu não consegui responder.
Não consegui nem abrir os olhos.
Virei pro outro lado, me encolhi e me enrolei no lençol até cobrir a cabeça.
Queria me esconder do mundo. De tudo. De mim.
O frio me dominava. Mas era um frio que não vinha do quarto, nem do tempo. Era de dentro. Um arrepio na alma. Meus dentes batiam levemente e meu corpo tremia, mesmo embaixo de tanta coberta.
Ouvi a porta se abrindo e os passos leves dela entrando no quarto.
ㅡ Você vai acabar perdendo a hora, meu amor... - disse baixinho, se aproximando.
Senti sua mão tocando meu ombro e depois meu rosto. Um carinho que sempre me confortava... mas hoje, não teve efeito. Nem calor. Nem paz. Só mais dor.
ㅡ Pai amado, Senhor Jesus! - ela exclamou, alarmada. - Você está ardendo em febre.
Senti quando ela saiu às pressas, provavelmente indo pegar um remédio.
Fiquei ali, imóvel.
Cada célula do meu corpo parecia gritar.
Cada memória da noite anterior me sufocava como se eu estivesse me afogando por dentro.
Minha pele queimava. Meu estômago revirava.
Eu não sabia mais se a febre era de verdade ou se era só o reflexo do que aquele monstro fez comigo.
Do que o Coringa fez comigo.
Senti vontade de arrancar minha pele. De sair de dentro do meu próprio corpo.
Me sentia imunda. Quebrada.
Violada.
"Por quê?"
"Por que comigo?"
"O que eu fiz pra merecer isso?"
Eu nunca fiz nada, nunca pedi nada.
Nunca olhei pra ele, nunca provoquei. Eu só queria viver em paz. E mesmo assim... ele me escolheu. Como uma presa. Como se eu fosse um objeto.
A porta se abriu de novo e minha mãe voltou com o copo d'água e o remédio. Me ajudou a sentar, ajeitando o travesseiro com cuidado. Eu bebi em silêncio, sem coragem de olhar pra ela. Se eu encontrasse os olhos dela agora, talvez desabasse. E eu não queria. Eu não podia.
Ainda não.
Voltei a me deitar devagar, escondendo o rosto no travesseiro molhado de suor e talvez lágrimas. Ela ficou ali por alguns segundos, fazendo carinho no meu cabelo. Depois saiu, fechando a porta com cuidado.
E eu fiquei.
Sozinha.
Desfeita.
Tudo estava escuro, muito escuro.
Eu corria, mas não sabia pra onde. O chão era irregular, parecia lama. Meus pés afundavam, e quanto mais eu tentava correr, mais lenta eu ficava.
Atrás de mim, eu ouvia passos.
Fortes. Lentos. Implacáveis.
A respiração dele também estava lá... pesada, próxima, como se o monstro estivesse quase me tocando.
ㅡ "Corre, boneca..." - ele dizia com aquela voz debochada, arrastada. ㅡ"Mas você sabe que não tem pra onde."
Eu gritava, mas não saía o som.
Minha boca se abria, minha garganta ardia, mas o som morria dentro de mim.
Queria acordar, mas meu corpo não obedecia.
Tudo estava embaçado. As luzes piscavam como se eu estivesse num beco, numa prisão, em um lugar onde ninguém podia me ver ou ouvir.
De repente, minhas pernas travaram. Caí no chão, bati os joelhos, os cotovelos, e a lama fria me cobriu.
Tentei levantar. Tentei fugir. Mas ele já estava ali.
Coringa.
O sorriso dele era a coisa mais cruel que eu já vi.
Aquele sorriso largo, falso, pintado de sangue.
Ele se abaixou, como quem brinca com um bicho ferido.
ㅡ "Eu disse que você era minha, princesa."
Tentei empurrá-lo. Bati com os punhos, gritei com os olhos. Mas ele segurou meus braços com força e me jogou de volta no chão.
A dor voltou.
A mesma dor.
O mesmo peso.
O mesmo horror.
ㅡ "Vai fingir que não gostou? Vai fingir que não provocou?" - ele sussurrava, enquanto me prendia, enquanto eu me debatia sem resultado.
Eu chorava, implorava, me contorcia.
Mas ele ria.
A risada dele ecoava por todos os lados, preenchia o lugar, fazia tudo girar.
E eu... me afogava.
Me afogava em nojo. Em desespero. Em vergonha.
De repente, ele sumiu. Mas a risada continuava.
E eu estava sozinha, caída, coberta de sangue e lama. E então ouvi vozes.
Risos.
Muitos rostos me olhando.
Apontando.
Julgando.
ㅡ "Olha lá, a santinha do morro..."
ㅡ "Devia ter ficado quieta..."
ㅡ "Ela quis. Ela mereceu."
Gritei com toda força que tinha.
ㅡ NÃO! NÃO FOI CULPA MINHA! -
Mas ninguém escutava.
Ninguém acreditava.
Ninguém me via.
E aí eu acordei.
Com o corpo encharcado de suor.
Com os olhos ardendo.
Com a alma em pedaços.
Era só um sonho. Mas eu revivi tudo. De novo. Como se nunca tivesse acabado.