E naquele cantinho discreto, escondido embaixo do carpete gasto do lado do motorista, ainda estão lá as iniciais que gravei quando tinha sete anos com a lâmina de um canivete que roubei da gaveta do papai: *M + A*.
Já no assoalho, aos pés do banco traseiro, tem o M❤️H, que coloquei ali quando tinha quinze anos. Marcas profundas no metal, evidência permanente de quando eu era criança boba demais para entender que algumas pessoas simplesmente não estão disponíveis para ser amadas. Que alguns corações já pertencem irrevogavelmente a outros, que alguns sonhos são impossíveis por definição.
Papai encontrou as iniciais uma vez, alguns meses depois de fazer. Estava limpando o carro numa tarde ensolarada de sábado, assobiando baixinho como sempre fazia quando estava concentrado numa tarefa. Levantou o carpete para aspirar por baixo e ficou olhando para as letras por um longo tempo, sem dizer nada. Eu estava observando da janela da sala, com o coração batendo tão forte que tinha certeza de que ele conseguiria ouvir dali de baixo. Mas quando finalmente falou comigo sobre o assunto, só sorriu com aquela gentileza infinita que sempre teve e disse que o carro guardava boas memórias, que minha "travessura" seria uma lembrança doce para sempre. Ele sempre soube ver o lado bom das coisas, sempre conseguiu encontrar beleza até nos meus erros mais óbvios, mesmo quando eu só conseguia enxergar a bagunça que havia virado a minha vida.
O motor do Bel Air ronca suave e confiável enquanto subo a última parte da estrada, aquela subida íngreme que sempre fez o carro que a mamãe tinha antes de adoecer esquentar demais. Papai o vendeu logo após descobrirmos a sua doença. Lembro-me de que mamãe falava muito mal do carro e que queria que vendesse, pois ela não aguentava mais aquele carro. Sempre dando problemas com ela, mas quando era com o papai, ele funcionava maravilhosamente bem, me fazendo rir de suas falas.
Cada curva conhecida revela mais da paisagem que ainda conheço de cor, mesmo depois de tanto tempo longe. São as mesmas árvores, os mesmos muros de pedra, as mesmas casas espalhadas pela encosta como se tivessem nascido naturalmente da terra. Quando finalmente avisto o portão de ferro forjado que marca a entrada da propriedade, meu coração falha uma batida e depois dispara descontroladamente.
A casa se ergue majestosa contra o céu estrelado, exatamente como deixei na memória. É a mesma construção imponente de pedra cinzenta que sempre me pareceu saída de um conto de fadas quando criança. As janelas estão escuras como olhos fechados, mas posso sentir que a casa está me observando voltar, reconhecendo minha presença depois de tanto tempo de ausência. É uma sensação estranha e reconfortante ao mesmo tempo, como ser recebida por um amigo muito querido que guardou seu lugar durante toda a sua ausência.
O jardim que mamãe cuidava com tanto carinho e dedicação ainda está lá, um pouco mais selvagem talvez, mas ainda reconhecível. Mesmo na escuridão, posso distinguir o formato familiar das roseiras trepadeiras no caramanchão de madeira pintada de branco, as hortênsias gigantes que formam muros naturais, o canteiro de lavanda que sempre perfumava o ar nas tardes de verão. A lagoa artificial onde aprendi a nadar nas tardes quentes de julho brilha como um espelho estilhaçado, refletindo a luz prateada da lua, suas águas escuras ondulando gentilmente com a brisa noturna.
A floresta densa de carvalhos centenários e pinheiros altíssimos se estende muito além dos limites da casa, misteriosa e acolhedora como sempre foi. Quando éramos crianças, eu e as crianças da escola, inventávamos histórias fantásticas sobre duendes travessos e fadas benevolentes que viviam escondidos entre as árvores mais antigas. Histórias bobas de criança, fantasias inocentes, mas que conseguiam tornar tudo mais mágico, mais cheio de possibilidades infinitas. Agora, olhando para aquela escuridão verde, sinto uma pontada de saudade daquela época em que acreditar em magia era a coisa mais natural do mundo.
- Esqueci como você era linda - sussurro para a casa, deixando as palavras se perderem na brisa noturna.
É reconfortante e assustador ao mesmo tempo, como reencontrar um amor antigo depois de anos sem contato. A casa parece exatamente igual, como se o tempo tivesse parado aqui, congelado no momento exato em que parti, esperando pacientemente que eu voltasse para colocar tudo em movimento de novo. É uma ilusão cruel e consoladora, essa sensação de que nada mudou quando na verdade tudo mudou irremediavelmente.
Paro o carro na garagem lateral, longe da entrada principal da casa. Não estou pronta ainda para o grande encontro, preciso me aproximar lentamente, como quem testa a temperatura da água antes de mergulhar. Saio do carro e meus passos no cascalho soam excessivamente altos na quietude absoluta da noite, cada pisada ecoando entre as paredes de pedra como pequenas explosões. Seguro as chaves velhas na mão - as mesmas de sempre, guardadas cuidadosamente durante todos esses anos longe, mais uma coisa que não mudou num mundo que parece ter se transformado completamente. O metal está frio contra minha palma suada, pesado com o peso de todas as memórias que carrega.
Caminho lentamente pela trilha de pedras que leva à porta principal, a mesma trilha que percorri milhares de vezes quando era criança, adolescente, aos dezoito cheia de sonhos e planos. Meus pés conhecem cada pedra solta, cada desnível do caminho. As plantas do jardim me cumprimentam silenciosamente - a lavanda que sempre amei, as rosas brancas que mamãe dizia serem minhas favoritas, a trepadeira de jasmim que perfuma o ar com sua doçura intoxicante.
Na porta principal de madeira maciça, hesito com a mão estendida em direção à fechadura. Esta chave abre muito mais do que uma simples casa. Abre todas as memórias cuidadosamente trancadas que deixei aqui quando parti, todos os arrependimentos que se acumularam como poeira nos cantos esquecidos da alma, todas as palavras que nunca tive coragem de dizer, todas as chances que desperdicei por orgulho ou medo ou pura teimosia.
Como gostaria de poder abraçar papai mais uma vez, somente uma vez. Sentir o cheiro familiar do sabonete de glicerina que ele sempre usava, ouvir sua risada contagiante quando contava aquelas piadas ruins que só ele achava engraçadas, sentir a segurança dos seus braços me protegendo do mundo. Pedir desculpas sinceras por ter sido tão teimosa, tão orgulhosa, tão cega para o que realmente importava. Por não ter estado lá ao lado dele quando mais precisou do meu apoio, quando estava enfrentando sozinho a tempestade que destruiu tudo que construímos como família.
Respiro fundo, enchendo os pulmões com o ar perfumado do jardim noturno. O passado não muda, isso aprendi da maneira mais dolorosa possível. Mas talvez eu ainda possa consertar algumas das coisas que quebrei quando fiz o que fiz. Talvez ainda haja tempo para pelo menos tentar remendar alguns dos estragos que causei. Talvez a esperança seja a única coisa que vale a pena carregar quando voltamos para casa depois de tanto tempo perdido.
Com mãos trêmulas, giro a chave antiga na fechadura que não mudou. A porta se abre lentamente, como se também estivesse hesitante depois de tanto tempo, revelando a escuridão familiar do corredor de entrada. Um cheiro inconfundível me invade - cheiro de casa verdadeira, de móveis antigos bem cuidados, de flores secas e cera de abelha, de memórias guardadas em cada canto como tesouros preciosos esperando para serem redescobertos.
É hora de enfrentar tudo que deixei para trás. É hora de finalmente voltar para casa de verdade, não apenas geograficamente, mas emocionalmente. É hora de parar de fugir e começar a consertar o que ainda pode ser consertado, de aceitar o que não pode ser mudado e de encontrar uma maneira de seguir em frente carregando o melhor do que fomos juntos como família.