Quando levanto os olhos para verificar o inchaço ao redor do olho dele, nossos olhares se encontram e ficam presos um no outro por alguns segundos que parecem eternos. Ele está me observando com uma intensidade que me deixa completamente desconfortável, como se pudesse ver por meio de todas as máscaras que aprendi a usar, todas as defesas que construí ao longo dos anos.
- Você mudou muito - ele diz finalmente, a voz mais baixa, mais rouca. - Continua linda.
O comentário me pega completamente desprevenida, como um soco no estômago. Desvio rapidamente o olhar da boca machucada dele e encontro seus olhos - ainda o mesmo tom dourado de mel que me fazia perder o sono quando eu tinha doze anos e achava que amor era só questão de querer muito, muito forte. Os mesmos olhos que eu dizia ser o meu sol particular e que me assombraram durante anos, que apareciam nos meus sonhos quando eu ainda era jovem e idiota demais para entender que alguns amores são impossíveis por definição - na verdade, ainda aparecem nos meus sonhos, eu que os empurro para um lugar na minha memória que não quero recordar.
- É... - Me remexo desconfortavelmente no sofá, criando mais distância entre nós. - Cresci e mudei. Não sou mais aquela menina sem juízo que agia sem pensar nas consequências - respiro fundo, juntando coragem para falar as palavras que venho ensaiando há anos, que preciso dizer para finalmente colocar um ponto final nesta história. - Não sou mais a criança imatura que destruiu não só o casamento de uma pessoa boa e inocente, como também a futura família do melhor amigo do meu pai.
As palavras saem mais amargas do que eu pretendia, carregadas de anos de culpa e arrependimento. Levanto-me rapidamente do sofá, querendo colocar distância física entre nós, mas ele segura meu braço com uma gentileza que me desarma completamente.
- Mally...
- Não, Hani. - Me solto do seu toque com mais brusquidão do que necessário. - Obrigada por trocar os fusíveis e por cuidar da casa todos esses anos, mas pode ir embora agora. Não precisa mais fazer isso.
- Mas eu...
- Haniel, estou muito cansada - interrompo, sem conseguir olhar nos olhos dele. - Amanhã conversamos, ok? Boa noite.
Caminho determinadamente em direção às escadas, querendo fugir desta conversa antes que ela tome um rumo que não consigo controlar, mas paro sem me virar quando chego ao primeiro degrau.
- Antes de sair, deixa as chaves que está com você aqui na mesinha. Não precisa mais delas. E me desculpa de novo por ter te machucado.
Subo as escadas correndo, pulando os degraus de dois em dois, e me tranco no meu quarto com o coração disparado. Encosto as costas na porta e deslizo até o chão, abraçando os joelhos contra o peito numa posição que costumava me consolar quando era criança e o mundo parecia grande demais, complicado demais.
Meu coração ainda está disparado, batendo tão forte que consigo ouvir cada pulsação nos meus ouvidos, a garganta completamente seca.
Levanto-me devagar, caminhando até a cama e me jogo nela, fico olhando fixamente para as estrelas desbotadas no teto, tentando controlar a respiração, tentando não pensar em como foi estranho estar tão perto dele de novo, em como algumas coisas simplesmente não mudam por mais que a gente queira.
Como fui idiota de pensar que ele não estaria cuidando da casa? Claro que estaria. Ele e papai eram unha e carne há mais de trinta anos, sempre um ajudando o outro, sempre conspirando juntos em pequenos projetos e grandes aventuras. Papai confiava nele mais do que em qualquer outra pessoa no mundo, e eu sabia disso.
É óbvio que ele estaria aqui, cumprindo fielmente qualquer promessa que tenha feito ao papai antes dele morrer. Papai deve ter pedido isso, tia Rouse comentou que ele deixou várias instruções detalhadas sobre como cuidar das coisas que deixava para trás. Só que eu tinha me esquecido convenientemente de que somos vizinhos há anos. Ou talvez quisesse esquecer, talvez preferisse fingir que podia voltar para casa sem ter que enfrentar essa parte específica do meu passado.
Oito longos anos longe de casa... Fui embora com dezoito, três anos morando com a tia Rouse e papai faleceu, agora cinco anos depois volto e ele continua exatamente o mesmo homem por quem me apaixonei quando ainda acreditava em contos de fadas. Algumas rugas novas ao redor dos olhos dourados, talvez os ombros um pouco mais largos, mas a intensidade daquele olhar não mudou absolutamente nada. Ainda é o mesmo homem gentil e forte por quem me apaixonei aos doze anos, quando pensava ingenuamente que príncipes encantados existiam de verdade. Imaginava que possuía um e que ele viria em sua busca, cavalgando sobre o pôr do sol em seu cavalo branco... O problema é que esse príncipe já tinha sua princesa.
E eu fui idiota demais para aceitar isso quando ainda era tempo de aceitar sem destruir tudo ao redor.
❤️🌻❤️
Na manhã seguinte, acordo com o sol entrando pelas cortinas de renda e o som familiar das gaivotas gritando lá fora. Por alguns segundos preciosos, esqueço onde estou e por que estou aqui. Poderia ser qualquer manhã da minha adolescência, quando meu maior problema era decidir que roupa usar para a escola ou se havia feito todos os deveres de matemática.
Mas a realidade volta rapidamente quando me lembro dos acontecimentos da noite anterior. Haniel. O porão. A nossa pequena discussão. As palavras que disse, a forma como fugi da conversa como uma covarde.
Levanto-me, indo diretamente para o banheiro, pegando a minha bolsa pelo caminho. Tiro a minha necessaire dela e faço a minha higiene. Preciso de um banho, mas antes preciso pegar as malas.
❤️🌻❤️
Desço, evitando cuidadosamente olhar pela janela da sala para a casa dele, que fica a poucos metros de distância. Não quero saber se ele está acordado, se está pensando em mim, se está planejando vir aqui de novo.
Abro a porta e vou para a garagem pegar as malas do porta-malas do Bel Air - tarefa que deveria ter feito ontem à noite se não tivesse caído no sono de exaustão - quando ouço passos conhecidos na entrada da garagem. Nem preciso me virar para saber quem é.
- Não acredito...
- O que você está fazendo aqui? - pergunto sem olhar para trás, continuando a puxar as malas pesadas, mas ele me ignora completamente.
- Esse é realmente o mesmo Chevrolet Bel Air 1958 do seu pai?
Finalmente me viro e o vejo parado na entrada da garagem, os olhos arregalados fixos no carro como se estivesse vendo uma aparição. O olho roxo está pior do que ontem, uma bela obra de arte em tons de roxo, azul e amarelo, e o lábio ainda está inchado. Me sinto terrivelmente culpada vendo os estragos que causei.
- É - respondo simplesmente, passando a mão com carinho no capô brilhante, sentindo o metal liso e frio sob a palma. - Tia Rouse me contou que papai havia vendido durante... durante os problemas. Pesquisei quem foi que comprou, consegui rastrear o cara, negociei por meses até ele aceitar vender de volta. Estava uma porcaria quando comprei, mas consegui restaurar.
- Lembro-me perfeitamente quando ele te pegou gravando as iniciais de vocês debaixo do carpete - Haniel sorri, e é aquele sorriso meio torto que sempre me desarmava completamente quando era criança. - Ele só sorriu e disse que o carro guardava boas memórias, que sua travessura ia ser um lembrete doce delas para sempre.