Atlas nunca me amou. Ele deixou isso claro desde o início. Seus olhos, antes tão cheios de um brilho brincalhão, agora continham apenas um desprezo frio quando pousavam em mim. Era um olhar que eu conhecia bem, um cobertor pesado que sufocava qualquer chama de esperança que eu ousasse manter.
- Amor? - ele zombou uma vez, depois que perguntei timidamente se ele poderia sentir algo por mim, qualquer coisa. - Você acha que isso é sobre amor, Elisa? Isso é sobre uma dívida. Uma obrigação. Sua mãe garantiu isso. - Suas palavras eram como pedaços afiados de gelo, estilhaçando qualquer pequeno sonho frágil que eu tivesse construído. - Você é uma algema, Elisa. Um lembrete de um passado que eu quero esquecer.
Eu tinha acreditado na Mamãe. Acreditei quando ela disse que ele tinha que me amar, que era o destino. Mas Atlas tinha rasgado essa crença, pedaço por pedaço doloroso. Minha inocência, meu coração confiante - eles não eram páreo para o ressentimento amargo dele. Eu era apenas um dano colateral, um monumento vivo a uma tragédia esquecida.
Dez anos atrás, o mundo parou de girar para mim. O guincho dos pneus, o cheiro de borracha queimada, o som de metal se rasgando. Foi um borrão de terror. Atlas, jovem e imprudente, tinha desviado para evitar um animal na pista. Nós batemos. Eu lembrava do impacto, do solavanco repentino e violento. Então, luzes brilhantes, piscando e cegando. Atlas, sangrando, preso sob o painel. Eu era apenas uma criança, mas algo dentro de mim surgiu. Eu puxei. Puxei com toda a minha força, uma força que eu não sabia que possuía, até que ele estivesse livre. Assim que o arrastei para fora dos destroços, o carro explodiu.
Acordei meses depois em uma cama de hospital, o mundo um lugar nebuloso e abafado. Minha cabeça doía o tempo todo. Os médicos usavam palavras grandes como "Traumatismo Cranioencefálico". Diziam que meu cérebro não funcionava mais do mesmo jeito. Que eu era como uma criança de seis anos, presa em um corpo que crescia. Mamãe chorava muito. Ela dizia que eu era seu anjinho, quebrada, mas ainda preciosa.
A família Ferraz, os pais de Atlas, ficaram gratos. Excessivamente gratos. Ofereceram dinheiro, o melhor tratamento. Mas Mamãe, Dona Ida, viu mais do que apenas gratidão. Ela viu uma oportunidade, uma maneira de garantir meu futuro quando ela se fosse. Ela já estava doente, definhando com câncer, seu prognóstico era sombrio.
Ela encurralou o pai de Atlas, o Sr. Ferraz.
- Minha Elisa salvou seu filho - implorou ela, a voz fina e desesperada. - Ela deu a mente dela por ele. O que será dela quando eu me for? Quem protegerá minha menina inocente?
Ela não pediu dinheiro. Ela pediu uma promessa. Um casamento. Para prender Atlas a mim, para garantir que eu sempre tivesse um lar, um protetor. O Sr. Ferraz, sobrecarregado pela culpa e pelo senso de dever, concordou. Atlas, mal saído da adolescência, recém-recuperado, foi forçado ao acordo.
Ele odiou. Ele me odiava.
Às vezes ele agarrava meu braço, os dedos cravando na minha pele.
- Olha o que você fez - ele sibilava, os olhos queimando de fúria. - Olha o que sua mãe fez! Você arruinou minha vida, Elisa. Você me prendeu.
Eu chorava, meu coração pequeno e simples incapaz de entender a raiva dele.
- Mas a Mamãe disse... a Mamãe disse que você me amaria - eu soluçava, minha visão embaçada pelas lágrimas. - Ela disse que você era meu príncipe corajoso.
Ele jogava a cabeça para trás e ria, um som áspero e amargo.
- Príncipe? Eu sou seu carcereiro, Elisa. E você, você é a prisioneira.
Uma noite, depois de mais um de seus surtos de raiva, corri para a Mamãe.
- Mamãe, por favor - implorei, segurando a mão dela, já frágil e fria. - Eu não quero ser esposa dele. Ele me odeia. Ele me machuca.
Os olhos da Mamãe, nublados pela dor e por uma luz feroz e moribunda, olharam para mim.
- Você deve, minha filha - sussurrou ela, a voz rouca. - É para o seu próprio bem. Quando eu me for, ele será tudo o que você terá. Ele te deve isso. Ele vai te proteger. Você só tem que ser boazinha. Seja sempre boazinha. E um dia, ele vai ver.
Ela morreu algumas semanas depois. E eu, a boa menina, tentei realizar seu último desejo. Tentei ser boazinha. Limpei o escritório dele, embora muitas vezes quebrasse coisas. Cozinhei refeições queimadas para ele, embora ele nunca comesse. Deixei bilhetinhos no travesseiro dele, rabiscados com desenhos infantis e palavras desajeitadas de afeto. Ele os triturava.
Ele manteve Cátia escondida no início. Depois, parou de se importar. Ele me fazia sentar na sala de estar, quieta como um rato, enquanto ele e Cátia riam, se tocavam e se beijavam no sofá.
- Olha, Elisa - dizia Cátia, a voz doce como açúcar, os olhos brilhando com malícia. - O Atlas me ama. Não você. Você é apenas... a obrigação dele.
Meu coração doía, um latejar surdo e constante. Mas eu ainda me agarrava às palavras da Mamãe. Seja boazinha. Ele vai ver.
Uma vez, depois que quebrei acidentalmente um vaso enquanto tentava tirar o pó, Atlas me arrastou para o porão. Era escuro, frio e cheirava a terra úmida.
- É para cá que as coisas inúteis vão, Elisa - ele rosnou, trancando a pesada porta de madeira atrás de si. - Assim como você.
Chorei por horas, encolhida no canto, segurando meu medalhão. Mas mesmo assim, uma parte pequena e tola de mim ainda tinha esperança. Talvez ele voltasse. Talvez percebesse que precisava de mim. Talvez me trouxesse um cobertor. Ele nunca trouxe.
Então veio o dia em que Cátia anunciou sua gravidez. Ela exibia sua barriga crescente, seu sorriso triunfante direcionado diretamente a mim.
- O Atlas vai ser pai - ela cantou. - Uma família de verdade. Não esse... arranjo.
Atlas, preso entre nós duas, tornou-se ainda mais volátil. Ele me disse que ia me levar para uma clínica, um "lugar especial" onde eu poderia ser "feliz". Eu sabia o que aquilo significava. Abandono.
Cátia, vendo sua chance, capitalizou a decisão dele. Uma noite, ela me encurralou na cozinha.
- Elisa - disse ela, a voz estranhamente gentil, quase amigável. - O Atlas está preocupado com suas dores de cabeça. Ele comprou essas vitaminas especiais para você. Tome. Elas vão fazer você se sentir melhor para a viagem. - Ela pressionou um pequeno frasco sem rótulo cheio de pílulas brancas na minha mão. - Apenas uma, toda manhã. Promete?
Eu acreditei nela. Eu queria acreditar nela. Eu queria ficar bem para o Atlas.
As pílulas me deixavam doente. Minha barriga doía. Mas Cátia apenas sorria.
- Significa que estão funcionando, querida. Você está ficando mais forte.
Logo antes de partirmos para a serra, Cátia teve uma "queda" dramática na escada. Ela gritou, segurando o estômago. Atlas correu para o lado dela, o rosto pálido de medo.
- Meu bebê! - ela chorou, olhando para mim com olhos arregalados e cheios de lágrimas. - A Elisa me empurrou! Ela está com ciúmes!
Os olhos de Atlas eram uma tempestade furiosa quando ele olhou para mim.
- Sua monstrinha - ele rugiu. - Como você ousa?
Ele não me bateu, não naquele momento. Mas as palavras dele foram piores. Eram marretas, destruindo os últimos vestígios da minha esperança. Ele tinha decidido, ali mesmo, que eu não era mais apenas um fardo, mas uma ameaça. Ele precisava que eu desaparecesse. Permanentemente.
Mais tarde, enquanto dirigíamos, Cátia descansou a cabeça no ombro de Atlas, uma imagem de felicidade doméstica.
- Não acredito que ela tentou machucar nosso bebê - murmurou ela, a voz trêmula. - E se algo acontecer? E se eu perder?
Atlas acariciou o cabelo dela, o olhar fixo na estrada, mas seus dedos apertavam o volante com tanta força que os nós estavam brancos.
- Nada vai acontecer com nosso bebê, Cátia - jurou ele, a voz tensa de determinação. - Eu prometo a você. Ela nunca mais vai ficar entre nós. - Ele olhou pelo espelho retrovisor, os olhos queimando com um fogo frio que me atravessou, mesmo como fantasma. - Nunca mais.
E então, ele aumentou a música. E eu, a esposa esquecida, o fardo, o monstro, fui deixada para morrer no porta-malas frio e escuro, minha vida se esvaindo, sem ser ouvida, sem ser vista.