As Cinzas da Minha Mãe, Minha Fúria Desencadeada
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Capítulo 2

Perspectiva de Calista

A noite passou em um borrão de sono agitado, assombrada pelos sussurros fracos da minha mãe e pela risada cruel de Caio. Quando a manhã finalmente chegou, não ofereceu consolo. Meus olhos pareciam arenosos, minha cabeça pesada. Arrastei-me para fora da cama, o quarto do hotel parecendo mais frio do que nunca.

Caio já estava de pé, sentado perto da janela, absorto em seu celular. Ele rolava por algo, um leve sorriso brincando em seus lábios. Sua rotina matinal não havia mudado, mesmo com uma amante no quarto ao lado e uma esposa que ele desprezava no mesmo.

"O que você está olhando com tanto interesse?" perguntei, minha voz rouca. Eu não me importava, não de verdade. Apenas seguindo os movimentos.

Ele mal olhou para cima.

"Apenas umas compras online. Jéssica mencionou que precisava de uma bolsa nova."

Meu olhar caiu em sua tela. Uma bolsa de couro de edição limitada, algo que eu havia admirado online, até adicionado à minha própria lista de desejos alguns meses atrás. Ele usava minha conta, às vezes, quando estava com preguiça de fazer login na sua. Uma intimidade fraca, quase esquecida.

Uma pontada, fugaz e indesejada, me atravessou. Eu a reprimi. Aquela Calista, a que se importava com bolsas frívolas e o afeto passageiro de Caio, já se fora há muito tempo.

"Parece bonita," eu disse, minha voz plana.

Ele finalmente olhou para mim, um lampejo de irritação em seus olhos.

"Você acha? Jéssica é um pouco exigente, mas acho que ela vai gostar. É moderna, nova. Não como algumas das... peças clássicas que você prefere." Seu tom era desdenhoso, uma alfinetada sutil no meu gosto, em mim.

O papel de parede do seu celular piscou. Uma foto de Jéssica, fazendo beicinho de brincadeira, seu cabelo tingido de um chocante rosa-choque. Lembrei-me de quando ele costumava reclamar do meu gosto para arte, chamando-o de "muito vanguardista". Mas ele havia procurado meticulosamente por uma pintura de um pôr do sol rosa para Jéssica, algo brega e açucarado, só porque ela mencionou uma vez que gostava da cor. Ele até passou dias criando um cartão ridículo, coberto de glitter, para o último aniversário dela. Ele havia zombado do cachecol silencioso, costurado à mão, que eu fiz para ele no seu, anos atrás.

"Combina com ela," eu disse, minha voz vazia.

Ele assentiu, satisfeito. Ele se levantou, caminhou até mim e me deu um beijo superficial na bochecha. Seus lábios pareciam frios.

Nesse momento, seu celular tocou. Um toque brilhante e alegre. O toque de Jéssica. Ele atendeu imediatamente, seu rosto se suavizando, um calor genuíno irradiando dele que eu não via direcionado a mim há anos.

"Bom dia, anjo," ele murmurou, sua voz baixa e íntima. Ele se afastou, indo para a pequena varanda do hotel, de costas para mim. Suas palavras eram sussurradas, destinadas apenas a ela.

Entrei na cozinha, começando a fazer café. Ele gostava do seu preto, forte. Eu preferia chá, meu estômago incapaz de lidar com a amargura. Uma alergia antiga, com a qual ele costumava se preocupar, garantindo que eu sempre tivesse minha mistura de camomila preferida.

Ele voltou para dentro, franzindo a testa.

"Sem café? O que eu devo beber?"

"Eu não bebo café, Caio," lembrei-o, minha voz desprovida de paciência. "Você sabe disso. Meu estômago dói."

Ele olhou para mim como se eu tivesse acabado de falar em uma língua estrangeira.

"Ah. Certo." Um momento de silêncio, um lampejo de algo ilegível em seus olhos. Então ele deu de ombros. "Acho que vou pegar um lá embaixo."

Lembrei-me de uma época em que ele preparava meticulosamente café coado para mim, explicando suas notas delicadas, garantindo que esfriasse na temperatura perfeita. Ele até pesquisou minhas alergias, fazendo uma lista de alimentos a evitar, uma carranca preocupada sempre em seu rosto. Agora, eu era apenas um vago inconveniente. Era estranho como ele havia esquecido facilmente, e como eu havia me adaptado facilmente a ser esquecida.

Ele estava prestes a sair quando hesitou, virando-se para mim.

"Me desculpe, Calista. Eu... às vezes eu esqueço." Ele parecia quase sincero. Um momento raro e perturbador.

Mas antes que eu pudesse processar, seu celular tocou novamente. Jéssica. Ele olhou para a tela, depois de volta para mim, aquele lampejo de irritação retornando aos seus olhos. O momento se foi.

"Eu tenho que ir," ele disse, o pedido de desculpas já esquecido. "Jéssica precisa de mim." Com isso, ele saiu pela porta. O som de seus sapatos caros ecoou pelo corredor.

Terminei meu chá sozinha, olhando para a cidade cinzenta. A solidão não era mais uma dor aguda, apenas uma dor surda, uma companheira constante.

Uma mensagem de texto vibrou no meu celular. Caio.

"Saindo com a Jéssica. Não me espere."

Eu olhei para a tela. Ele não mandava uma mensagem de "não me espere" há anos. Não desde os primeiros meses do nosso casamento, antes que suas noites tardias se tornassem a norma, antes que minhas súplicas se transformassem em silêncio. A última vez que ele "reportou" ativamente seu paradeiro, acho, foi há três anos, antes de sua empresa realmente decolar. Uma vida atrás.

Eu não respondi. Não havia nada a dizer.

Mais tarde naquela tarde, saí do quarto do hotel, o cartão-chave pesado em minha mão. Recuperei as cinzas da minha mãe da funerária. Elas estavam em uma urna pequena e elegante, fria e lisa sob meus dedos. Uma onda de profunda dor me invadiu, um peso físico pressionando meu peito. Eu havia planejado levá-la para São Paulo comigo, para espalhar suas cinzas em um campo de flores silvestres, como ela sempre quis. Uma despedida silenciosa e pacífica.

Ao sair da funerária, a cidade explodiu em luz. Fogos de artifício. Uma explosão de cor contra o céu do crepúsculo. Uma celebração. Para quê?

Meu celular vibrou. Mídia social. Uma foto de Jéssica. Ela estava sorrindo, radiante, ao lado de Caio. Ele segurava um controle remoto, olhando para o céu. Acima deles, drones pintavam um coração gigante e brilhante no ar. Dentro do coração, o rosto de Jéssica, meticulosamente recriado por pequenas luzes.

A legenda dizia: "Surpresa de aniversário antecipada! Caio é o melhor marido de todos! Tanta sorte de tê-lo. #PrimeiroAniversário #AmorDaMinhaVida."

Minha visão ficou turva. Primeiro aniversário. Era o nosso aniversário, nosso aniversário de casamento. Não o deles. Ainda não.

Outra postagem. Caio, repostando a foto de Jéssica, adicionando sua própria legenda: "Para a minha única e exclusiva." Ele a fixou no topo de seu perfil, logo acima de uma foto empoeirada e esquecida do nosso próprio casamento.

Os comentários inundaram. "Tão romântico!" "Jéssica, você merece isso!" "Calista nunca conseguiria." "Pobre Calista, parece que ela foi substituída."

Meu estômago revirou. Engasguei, apoiando-me em uma parede de tijolos fria, a bile subindo em minha garganta. Lembrei-me de lavar suas roupas, esfregando manchas de vinho de suas camisas caras, deixando suas meias sujas de molho quando ele estava muito cansado. Ele tinha uma obsessão meticulosa com a limpeza, uma fobia de sujeira. No entanto, na foto de Jéssica, ele estava rindo, suas mãos cobertas de tinta, ajudando-a a criar algum projeto de arte infantil. Ele nunca levantou um dedo por mim. Ele sempre dizia que eu era "muito delicada" para tais tarefas, mas seus olhos sempre continham um toque de nojo.

Uma dor surda e latejante começou na parte inferior da minha barriga. Não era o tipo de dor que eu normalmente sentia. Era mais profunda, mais insistente.

Fechei os olhos, tentando bloquear as imagens intrusivas, as palavras cruéis. O mundo girou. Quando os abri novamente, vi um rosto familiar correndo em minha direção. Minha empregada. Maria. Seus olhos arregalados de pânico.

"Dona Calista!" ela gritou, correndo para frente.

Antes que ela pudesse me alcançar, uma dor ardente explodiu em minha bochecha. Um golpe forte e cortante. O mundo inclinou.

            
            

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