Minha visão turvou. Não foi um acidente. Foi ela. Ela me empurrou. Ela causou isso. E Guilherme, sua devoção cega a ela, seu completo descaso por mim, me enojava. Ele estava acobertando-a, mesmo agora, quando eu estava caída e quebrada no chão.
Quando finalmente acordei por completo, estava em uma cama de hospital. Minha cabeça latejava, meu tornozelo estava engessado e meu braço, aquele que Carla fez ser cortado, estava enfaixado. Mas a dor emocional, o peso esmagador da traição deles, superava qualquer desconforto físico.
Uma enfermeira entrou apressada, verificando meus sinais vitais. "Você tem sorte, querida", disse ela, com a voz alegre. "Seu noivo, o Sr. Monteiro, tem estado tão preocupado com você. Ele não saiu do seu lado. Um homem tão dedicado!"
Noivo. Dedicado. As palavras tinham gosto de cinzas na minha boca. "Ele não é meu noivo", afirmei, minha voz plana, sem emoção. "E eu não quero vê-lo."
A enfermeira piscou, surpresa, mas antes que pudesse responder, a porta se abriu. Guilherme. Ele entrou correndo, o rosto marcado por uma preocupação fingida.
"Flora! Oh, meu amor, você acordou!" Ele pegou minha mão, seu toque frio e desconhecido. "Eu estava tão preocupado. O que aconteceu? Os médicos não conseguiram descobrir. Apenas disseram que você teve uma queda feia."
Ele ainda estava mentindo. Ainda me manipulando. Ainda tentando controlar a narrativa. Meus olhos se estreitaram. "O que aconteceu, Guilherme?", perguntei, minha voz perigosamente calma. "Ou melhor, quem aconteceu?"
Ele se encolheu, seu olhar desviando. "Flora, não seja ridícula. Foi um acidente. A Carla ficou tão angustiada. Ela me disse que você simplesmente... tropeçou."
Seus olhos estavam frios, calculistas. Ele não estava tentando me confortar; estava tentando avaliar meu estado mental, para ver se eu me lembrava de algo. Um lampejo de triunfo cruzou seu rosto quando não refutei imediatamente sua história.
"Ela se sentiu tão mal", ele continuou, tecendo suavemente sua teia de mentiras. "Ela queria vir visitar, mas eu disse a ela que você precisava descansar. Ela é tão sensível, sabe."
Ele era um mestre manipulador. Estava torcendo a faca, fazendo de Carla a vítima e de mim a instigadora. Lembrei-me de como ele costumava me defender, me proteger das duras realidades do mundo. Agora, ele a estava protegendo, às minhas custas.
"Não se preocupe, Flora", disse ele, sua voz doce como sacarina. "Eu cuidarei de tudo. Apenas se concentre em melhorar. Deixaremos toda essa desagradável situação para trás."
Seu tom paternalista, suas palavras displicentes, solidificaram minha resolução. Eu estava farta. Farta de suas mentiras, suas manipulações, suas traições. Eu melhoraria. Eu iria embora. E ele nunca mais me veria.
Passei os dias seguintes no hospital, me recuperando, planejando. Guilherme visitava todos os dias, interpretando o papel do amante preocupado. Ele trazia flores, chocolates, revistas. Falava sobre nosso futuro, nossos planos, como se nada tivesse acontecido. Eu ouvia, meu rosto impassível, meu coração frio. Eu era um fantasma, uma casca do que fui.
Quando finalmente recebi alta, Guilherme estava lá, esperando com um carro caro e um sorriso forçado. Ele me levou para casa, mas não parecia mais um lar. Era uma tumba, um monumento a um amor que teve uma morte brutal.
"Olha, Flora", disse ele, sua voz tentando entusiasmo. "Eu reservei uma viagem para nós para Paris. Uma escapada romântica. Só nós dois. Vamos esquecer todo esse mal-entendido bobo."
Ele ainda estava tentando comprar meu afeto, me distrair com luxo. Mas o encanto se foi. Tudo o que eu via era o preço, o custo de seu engano.
Mais tarde naquela semana, uma foto apareceu nas notícias. Carla, recebendo um prêmio em uma cerimônia da APM. Ela estava radiante, segurando uma estatueta dourada. *Estrela em Ascensão Carla Bastos Homenageada por Conquista Musical.*
Meu estômago se revirou. Ela estava vivendo meu sonho, se deliciando sob os holofotes que deveriam ser meus. Guilherme me manteve escondida, suprimiu meu talento, enquanto ela prosperava. Ele sempre foi tão cuidadoso em manter minha frequência na APM em segredo, até mesmo de sua equipe de maior confiança. Ele sempre dizia que me queria só para ele, que meu talento era precioso demais para ser compartilhado. Agora eu sabia a verdade.
"Ela é realmente talentosa, não é?", disse Guilherme, sua voz tingida de admiração enquanto assistia à reportagem. "Uma verdadeira prodígio. Sabe, você poderia ter sido assim, Flora, se tivesse se concentrado mais."
Suas palavras foram um punhal, girando na ferida. Ele estava menosprezando meu talento, minha paixão, enquanto elogiava a dela. Ele estava reescrevendo minha história, diminuindo meu valor.
"Não", eu disse, minha voz afiada, clara. "Eu cansei de música. Não é para mim." Eu já tinha dito isso antes, para ele, para mim mesma, quando ele começou a controlar minha vida. Mas desta vez, era uma mentira, um escudo.
Ele me olhou, surpreso, então um sorriso presunçoso se espalhou por seu rosto. "Essa é a minha garota. Decisão inteligente. Você é boa demais para toda essa confusão. Você pertence a mim."
Suas palavras, mais uma vez, eram para controlar, para confinar. Mas desta vez, elas me encheram de uma alegria feroz. Ele pensava que estava ganhando. Ele pensava que tinha apagado minha chama. Mas ele estava errado. Ele apenas jogou gasolina nela.
No dia seguinte, liguei para a Dra. Helena novamente. "Estou pronta", eu disse, minha voz tremendo de excitação contida. "O conservatório europeu. Eu vou."
"Excelente!", exclamou a Dra. Helena. "Eu sabia que você tinha isso em você, Flora. Seus pais ficariam tão orgulhosos."
Pais. A palavra pairou no ar. Eu não tinha pais. Eu era órfã. Mas as palavras, a crença dela em mim, acenderam uma nova esperança. Um novo caminho.
Mais tarde naquela noite, eu estava fazendo meus preparativos finais para minha partida. Guilherme estaria fora, em outra de suas "reuniões de negócios". Quando eu estava prestes a sair, a campainha tocou.
Guilherme. Ele estava ali, surpreso, um pequeno sorriso conhecedor brincando em seus lábios. Ele voltou cedo. Cedo demais. Ele me olhou de cima a baixo, seu olhar possessivo. "Flora", disse ele, sua voz tingida de triunfo. "Onde você vai?"