"Sim", eu disse, minha voz mais firme agora, uma resolução desesperada endurecendo minha espinha. "Eu só ia tomar um ar fresco. Foram dias estressantes."
Ele me encarou, seu olhar penetrante, tentando dissecar minhas mentiras. Um lampejo de algo, talvez culpa, cruzou seu rosto, rapidamente substituído por sua fachada charmosa de sempre. Ele deve ter se lembrado de seu próprio engano, das mentiras que inventou sobre suas "viagens de negócios".
"Sabe", disse ele, aproximando-se, sua voz suavizando. "Eu estive pensando no que eu disse. Sobre sua música. Talvez eu estivesse errado. Talvez você devesse seguir com isso, se te faz feliz. Eu vou te apoiar, Flora. Sempre."
Suas palavras eram um bálsamo envenenado, destinadas a acalmar e desarmar. Ele estava tentando balançar uma cenoura falsa, para me puxar de volta para sua órbita. Mas o estrago estava feito. Eu via através de sua atuação. Ele só estava dizendo isso porque sentiu que eu estava escapando, porque seu controle estava ameaçado.
Antes que eu pudesse responder, seu celular vibrou. Ele olhou para a tela e sua expressão se contraiu. "É meu avô", disse ele, sua voz seca. "Outra crise. Eu tenho que ir."
Ele me olhou, um apelo silencioso em seus olhos, como se esperasse que eu entendesse, que esperasse. Mas eu não esperaria. Esta era minha chance.
"Vá", eu disse, minha voz plana. "Eu vou ficar bem."
Ele hesitou por mais um momento, então, com um suspiro, virou-se e saiu, seus passos ecoando no corredor silencioso. Eu o observei ir, uma sensação de alívio me invadindo. Ele se foi. Minha chance. Minha fuga.
Eu corri. Para fora da porta, pela entrada da garagem, sem olhar para trás. Chamei um táxi, dando ao motorista as coordenadas do aeródromo particular que a Dra. Helena havia arranjado. Liberdade. Estava tão perto que eu podia sentir o gosto.
Enquanto o táxi se afastava, eu a vi. Carla. Ela estava na beira da estrada, um sorriso predatório no rosto, me observando ir. Nossos olhos se encontraram, e um arrepio percorreu minha espinha. Ela sabia. Ela sempre soube.
"Indo embora tão cedo, Flora?", ela zombou, sua voz escorrendo malícia. "Fugindo de novo? Algumas coisas nunca mudam, não é, garotinha de orfanato?"
Suas palavras eram um dardo venenoso, perfurando minha fachada cuidadosamente construída. Ela sabia sobre meu passado, minhas inseguranças. Ela sabia como me machucar.
"Você se acha tão esperta, não é?", ela continuou, aproximando-se da janela do táxi, seus olhos brilhando de triunfo. "Você acha que pode simplesmente sair daqui, deixando o Guilherme para juntar seus cacos. Mas ele é meu agora. Todo meu. E você? Você não é nada. Apenas uma memória. Um brinquedo descartado."
"E você", eu disse, minha voz firme, "é uma oportunista patética. Você nunca será suficiente para ele. Ele vai te mastigar e te cuspir, assim como fez comigo."
Seu sorriso vacilou, um flash de raiva substituindo o triunfo. "Oh, Flora", disse ela, sua voz baixando para um sussurro, "você não tem ideia do que sou capaz. Você acha que pode escapar? Pense de novo."
O motorista do táxi, sentindo a tensão, acelerou. Olhei para trás, observando Carla encolher à distância, sua figura uma silhueta escura e sinistra contra o sol poente. Suas palavras, suas ameaças, ecoavam em minha mente. Ela era perigosa. Mais perigosa do que eu jamais imaginei.
Mais tarde naquela noite, Guilherme havia organizado uma pequena e íntima celebração para meu suposto "retorno". Ele encheu a mansão de flores, velas e meus pratos gourmet favoritos. Ele estava tentando recriar a ilusão de nosso amor perfeito, para me embalar de volta à complacência.
Assim que estávamos prestes a nos sentar para jantar, a campainha tocou. Guilherme, irritado, foi atender. Carla estava lá, parecendo desolada, uma única lágrima escorrendo por sua bochecha.
"Guilherme", ela choramingou, "me desculpe por interromper, mas eu simplesmente... não suportaria ficar sozinha esta noite. Meu apartamento ainda parece tão... violado." Ela olhou para mim, um brilho rápido e triunfante em seus olhos. "Eu só precisava de um rosto amigo."
Guilherme, sempre o herói, imediatamente amoleceu. "Carla, querida, entre. Claro. Você é sempre bem-vinda aqui."
Ele a conduziu até a mesa, puxando uma cadeira para ela ao meu lado. A mesma cadeira que ele havia puxado para mim momentos antes. Eu o observei, meu coração um bloco de gelo congelado. Sua hipocrisia era espantosa. Ele acabara de declarar seu "amor inabalável" por mim, e agora estava convidando sua noiva para nosso jantar íntimo.
Meu olhar caiu sobre um delicado vaso de cristal, cheio de rosas brancas. Rosas brancas. Minhas favoritas. Ele sempre soube. Ele sempre as usou como um símbolo de seu afeto, sua devoção. Agora, elas pareciam uma zombaria, um lembrete cruel de um amor que nunca foi real.
"Rosas brancas, Flora", disse ele, sua voz suave, quase melancólica. "Só para você."
"São mesmo, Guilherme?", perguntei, minha voz plana. "Ou são apenas mais um adereço em sua peça elaborada?"
Ele se encolheu, seu sorriso vacilando. "Flora, do que você está falando? Eu as comprei para você. Minha rosa selvagem."
"Não", eu disse, empurrando minha cadeira para trás. "Não me chame assim. Não mais."
Levantei-me, meu olhar varrendo a mesa suntuosa, a comida cara, as flores cuidadosamente arranjadas. Era tudo uma fachada. Tudo uma mentira.
"Não estou com fome", eu disse, virando-me para sair. "Vocês dois aproveitem sua... celebração."
Afastei-me, precisando ficar sozinha, precisando respirar. Eu podia ouvir suas vozes abafadas, seus sussurros ansiosos, enquanto me retirava para o meu quarto. Ele provavelmente estava tentando explicar meu "humor", tentando tranquilizar a Carla de que eu não era "ameaça".
Mais tarde, da minha janela, eu os observei. Guilherme e Carla, dançando lentamente na sala de estar, banhados pelo brilho suave dos lustres. Ele a segurava perto, a cabeça apoiada no ombro dela. A cena era doentiamente íntima, uma paródia distorcida dos momentos que ele havia compartilhado comigo.
O consenso geral, como ouvi da equipe, era que eles eram um casal perfeito, tão apaixonados. "O Sr. Monteiro é tão dedicado", a governanta sussurrou para o jardineiro. "E a Srta. Bastos, tão doce, tão compreensiva."
As palavras deles foram como uma nova facada. Eles viam a ilusão, a performance cuidadosamente construída. Eles não viam a garota quebrada, os sonhos estilhaçados, a traição amarga.
De repente, uma voz, afiada e clara, cortou a noite silenciosa. "Sabe, Guilherme, ela realmente é só uma órfã. Um caso de caridade. Você sempre teve um fraco pelos quebrados, não é?"
Era Carla, sua voz escorrendo desprezo. Aproximei meu ouvido da janela.
Guilherme riu, um som frio e desdenhoso. "Ela foi útil, Carla. Mas você... você é inesquecível."
Meu sangue gelou. Eles estavam falando de mim. De novo. As palavras dela, seu desprezo, me cortaram como uma navalha. Eu era um caso de caridade. Uma quebrada. Um brinquedo útil. As palavras ecoavam em minha mente, um refrão atormentador.
Meu corpo tremia, um grito cru e primal preso na minha garganta. Eu queria quebrar algo, quebrar tudo de belo nesta casa, assim como eles me quebraram.
A voz de Guilherme, agora apaziguadora, chegou aos meus ouvidos. "Flora, amor, não dê ouvidos a ela. Ela está apenas sendo boba." Ele estava tentando me acalmar, me manipular, mesmo quando pensava que eu não podia ouvi-lo. A pura audácia de sua manipulação era enfurecedora.
"Ela está certa, Guilherme", sussurrei, minha voz rouca. "Ela está certa sobre tudo."
"Flora, querida, acalme-se", disse ele, sua voz tingida de preocupação forçada. "A Carla não quis dizer nada com isso. Ela está apenas com um pouco de ciúmes, sabe. Mas você, você é a minha única."
Ele ainda estava tentando me apaziguar, me manter cativa em sua teia de mentiras. Mas eu estava farta. Farta de suas falsas promessas, de suas palavras vazias.
De repente, seu celular tocou, seu som estridente quebrando a paz frágil. Ele atendeu, sua testa franzida de preocupação.
"O quê?", ele exclamou, sua voz subindo em pânico. "A Carla? Sequestrada? Por Dário Andrade?!"
Ele olhou para Carla, seu rosto uma máscara de preocupação frenética. Ela, por sua vez, olhou de volta para ele, seus olhos arregalados de medo, uma única lágrima escorrendo por sua bochecha. Mas havia um lampejo de outra coisa em seu olhar, um brilho triunfante que me deu um arrepio na espinha.
"Guilherme, querido", Carla choramingou, "o que vamos fazer? Ele é um monstro! Ele vai fazer coisas terríveis comigo!"
Os olhos de Guilherme, cheios de pânico, se voltaram para mim. Uma súbita e horrível constatação me ocorreu. Isso era uma armação. Uma armadilha. E eu era a isca.
"Eu preciso ir", disse Guilherme, sua voz tensa. "Eu tenho que salvá-la." Ele me olhou, seu olhar frio, resoluto. "Flora, fique aqui. Não se mova. Não faça nenhuma besteira."
Suas palavras eram uma ordem, uma última tentativa desesperada de me controlar. Mas eu estava farta de suas ordens. Eu estava farta de seu controle. Eu estava farta.