Capítulo 3

Ponto de Vista: Juliana Campos

Íris estava se recuperando. Um milagre pequeno e vibrante. Seu peito ainda exibia a linha tênue de uma cicatriz, um testemunho da cirurgia, mas sua risada ecoava pelo quarto espaçoso e ensolarado. Um novo coração, uma nova chance. O coração de Gustavo. Ele tinha sido o doador, a combinação perfeita. A ironia era uma pílula amarga.

Eu a observava, com uma ternura tão profunda que doía, enquanto ela empilhava cuidadosamente blocos coloridos. Minha filha. Minha filha corajosa e resiliente.

"Mamãe, olha!", ela exclamou, apontando para um canto do quarto. "Presentes!"

Meu olhar seguiu o dela. Uma pequena montanha de caixas brilhantemente embrulhadas estava sobre uma mesa de mogno. Brinquedos, roupas, livros. Tudo novo. Tudo caro.

"São do homem?", Íris perguntou, sua voz baixa de admiração.

Eu assenti, uma afirmação silenciosa. Gustavo vinha nos cobrindo de presentes desde a recuperação de Íris. Uma gaiola dourada, talvez, mas uma gaiola mesmo assim. Uma confortável.

Os olhos de Íris se arregalaram. "Ele é tão rico, mamãe! Talvez... talvez possamos usar o dinheiro dele para comprar uma casa de verdade para nós? E uma biblioteca bem, bem grande, como a do vovô?"

Suas palavras, por mais inocentes que fossem, me perfuraram. Uma casa de verdade. Uma biblioteca. A vida que eu tive um dia, a vida que eles roubaram.

Minha mente vagou, sem ser convidada, para outro tempo, outra vida. Uma vida antes da queda.

O zumbido suave da música de cordas, o cheiro de rosas brancas, o murmúrio gentil de antecipação. Era o dia do meu casamento. Eu estava ao lado de Gustavo, sua mão quente e forte na minha, as palavras do celebrante um borrão de felicidade. Então, as luzes piscaram. Uma escuridão súbita e chocante.

Um holofote ofuscante perfurou a penumbra, iluminando a grande tela de projeção acima de nós. Minha respiração ficou presa. O rosto do meu pai, depois uma manchete: "Professor Matos Acusado de Comportamento Predatório". Abaixo, uma foto granulada dele e da irmã de Gustavo, o braço dela entrelaçado no dele, andando na chuva. Um ato inocente de bondade, distorcido em algo sinistro.

Então, a filmagem mudou. Meu próprio rosto, mais jovem, vulnerável. Uma série de vídeos íntimos, editados para me retratar como manipuladora, coercitiva. Minha voz, sussurrando palavras de carinho para Gustavo, distorcida em uma confissão de exploração de um estudante ingênuo.

"Juliana, diga a eles", a voz de Gustavo, fria e distante, cortou o silêncio chocado. "Diga a eles que você me seduziu. Diga a eles que seu pai se aproveitou da minha irmã."

Eu o encarei, meu coração se partindo em um milhão de pedaços. O homem que eu amava, meu noivo, era um estranho. Um monstro.

"Ela está mentindo!", eu gritei, minha voz crua de incredulidade. "Meu pai é inocente! Ele ajudou sua irmã!"

Mas as palavras foram abafadas pelos gritos dos colegas do meu pai, ex-amigos, agora se voltando contra ele como uma matilha de lobos. "Desgraça! Pedófilo!"

Meu pai, Dr. Matos, frágil e de coração partido, tentou explicar. Ele correu atrás deles, desesperado para limpar seu nome. Ouvi o guincho de pneus, os gritos horrorizados. Ele se foi.

Minha mãe, incapaz de suportar o peso do escândalo, entrou em parafuso. Ela perdeu tudo, apostou tudo, e depois tirou a própria vida.

E eu? Gustavo me internou. Declarada inapta, insana. Eu estava grávida na época. Nosso filho, Arthur, nasceu atrás daquelas paredes frias e acolchoadas. Eles o tiraram de mim, poucas horas depois de ele vir ao mundo. Kiara, sorrindo, o levou embora, sussurrando: "Ele está melhor sem você, Juliana."

Gustavo me visitava às vezes. Bêbado. Ele se inclinava sobre minha cama, seu hálito fedendo a uísque. "Olhe para você, Juliana. Uma figura trágica. Você trouxe tudo isso para si mesma. Você e sua família de degenerados." Ele me batia então, um tapa no rosto, e depois ia embora. Deixando-me quebrada, sozinha, coberta de hematomas e desespero.

Uma batida na porta me trouxe de volta ao presente. Gustavo estava na porta, um pequeno diário encadernado em couro na mão. O diário. Aquele que eu "perdi" estrategicamente.

"Você deixou isso", ele disse, sua voz baixa, seu olhar cauteloso. Ele o estendeu para mim. "Eu não li. Nenhuma palavra."

Ele estava mentindo. Eu podia ver no leve tremor de sua mão, na maneira como seus olhos evitavam os meus. A culpa era uma coisa palpável, irradiando dele.

"Fique com ele", eu disse, minha voz plana, desprovida de interesse. Eu não o peguei. "Não tem mais significado para mim."

O quarto ficou em silêncio, pesado com palavras não ditas. Ele ficou lá, segurando o diário, parecendo perdido. Era exatamente isso que eu queria. Fazê-lo duvidar, fazê-lo questionar tudo o que ele pensava que sabia.

"Preciso verificar a medicação da Íris", eu disse, usando a desculpa para escapar. Passei por ele, indo em direção ao banheiro.

Ele se moveu rapidamente, bloqueando a porta, seu braço apoiado no batente, me prendendo. Seus olhos percorreram meu rosto, demorando-se nas sombras fracas sob meus olhos, nas linhas cansadas ao redor da minha boca. "Você ainda está tão magra", ele murmurou, seu polegar roçando levemente minha bochecha. O toque foi inesperado, um fantasma de intimidade que fez minha pele arrepiar.

"Você tem uma maneira estranha de mostrar preocupação, Gustavo", eu disse, minha voz tingida de gelo. "Geralmente, envolve me trancar ou destruir minha família."

Ele recuou. "Juliana, eu... eu posso te dar tudo o que você quiser. Dinheiro. Uma nova vida. Qualquer coisa." Ele me soltou, dando um passo para trás. "Eu sei que estraguei tudo. Terrivelmente. Mas eu juro, eu pensei... eu pensei que seu pai era um monstro. Eu pensei que você... você me enganou."

"E agora?", perguntei, encontrando seu olhar diretamente. "Agora você acha que mereço sua caridade? Sua pena?" Um sorriso amargo torceu meus lábios. "Talvez eu mereça. Talvez eu sempre mereci isso. Ser quebrada. Ser humilhada. Ter tudo o que eu amava arrancado de mim."

Seus olhos se arregalaram, o choque lutando com a confusão. Esta não era a mulher desafiadora e cuspideira que ele se lembrava. Esta era uma casca quebrada, aparentemente aceitando seu destino. Esta era minha nova máscara.

A antiga Juliana teria gritado. Ela teria lutado com ele, amaldiçoado-o, lançado acusações como punhais. Lembrei-me do desespero, da energia frenética da minha resistência inicial, da maneira como eu o arranhei, mordi e lutei, apenas para ser subjugada, injetada e trancada. Aquela Juliana estava morta. Esta Juliana era muito mais perigosa.

Ele hesitou, depois pegou o telefone. Alguns toques, e então: "Acabei de transferir cinco milhões de reais para sua conta, Juliana. É um começo."

A pura audácia disso. Cinco milhões de reais por uma vida inteira de sofrimento. Mas era um começo. Um recurso necessário para o meu plano.

Naquele momento, seu telefone tocou novamente. Um nome familiar brilhou na tela. Kiara Lacerda. Gustavo fez uma careta, depois atendeu, sua voz suavizando um pouco, embora um fio de aborrecimento ainda estivesse presente. "Kiara, o que foi? Estou ocupado."

Ouvi a voz estridente de Kiara do outro lado, mal abafada. "Gustavo, onde você está? Arthur está perguntando por você. Ele teve um pesadelo. Ele sente sua falta, querido." Seu tom era possessivo, manipulador.

Gustavo suspirou. Ele olhou para mim, um brilho de algo indecifrável em seus olhos. "Juliana", ele disse, sua voz hesitante. "Arthur... ele pergunta por você às vezes. Você... você consideraria visitá-lo? Só por um tempinho?"

A pergunta pairou no ar, um teste, um apelo. Minha mente correu. Esta era uma virada inesperada. Esta era uma oportunidade.

            
            

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