Ponto de Vista: Juliana Campos
A luz do sol entrava pelas janelas altas, iluminando partículas de poeira dançando no ar. O quarto era vasto, opulento, cheio de móveis antigos e tapetes felpudos. Pisquei, desorientada, e então percebi que estava deitada em uma cama king-size, os lençóis de seda frios contra minha pele. Era um contraste gritante com o colchão puído e as luzes fluorescentes piscantes da minha existência habitual.
"Mamãe, você acordou!", o grito alegre de Íris cortou minha confusão. Ela pulava na cama, vestida com um vestido rosa ridiculamente cheio de babados, o cabelo preso com uma fita de cetim. Ela parecia uma princesa em miniatura.
A porta se abriu novamente, e Gustavo entrou, segurando a mão de Arthur. Arthur, também, estava impecavelmente vestido com um terninho, o cabelo bem penteado. Ele evitou meu olhar, os olhos fixos no chão. O menino estava desconfiado de mim, constantemente dividido entre minha presença e os anos de doutrinação.
Sentei-me, a seda escorregando dos meus ombros. Minhas roupas, minhas roupas familiares e gastas, não estavam em lugar nenhum. Meu estômago se contraiu. Eu precisava sair. Agora. Levantei as pernas da cama, procurando por algo, qualquer coisa, para me cobrir.
Naquele momento, a porta se abriu novamente. Kiara Lacerda estava lá, uma bandeja de prata carregada com o café da manhã em suas mãos. Ela usava um roupão de seda, o cabelo artisticamente desarrumado, um quadro de felicidade doméstica. Seus olhos, no entanto, estavam estreitados, um brilho triunfante em suas profundezas.
"Bem, veja quem decidiu nos agraciar com sua presença", Kiara ronronou, sua voz pingando falsa preocupação. Ela colocou a bandeja em uma mesa próxima com um barulho, depois se virou para mim, os braços cruzados. "Sentindo-se melhor, Juliana? Você nos deu um belo susto. Desmaiar em uma cozinha gordurosa. Sério, querida, você precisa se cuidar melhor."
Meus nós dos dedos ficaram brancos enquanto eu agarrava a beirada da cama. Suas palavras estavam cheias de ácido, um insulto mal velado.
"Talvez você queira um pouco deste delicioso mingau de aveia?", Kiara continuou, seu sorriso se alargando maliciosamente. Ela estendeu uma colher do cereal fumegante. "Está maravilhosamente quente. Do jeito que o Gustavo gosta."
Antes que eu pudesse reagir, ela inclinou a colher. Uma porção de mingau escaldante espirrou no lençol branco imaculado, a centímetros do pé de Íris. Não foi um acidente. Seus olhos se voltaram para os meus, um desafio silencioso.
Meu sangue gelou. O instinto primitivo de proteger Íris surgiu em mim. Instintivamente, estendi a mão, puxando Íris para trás de mim, protegendo seu corpo pequeno com o meu.
Um borrão de movimento. Gustavo, que estava parado em silêncio perto da porta, de repente estava entre Kiara e eu. Sua mão disparou, derrubando a bandeja das mãos de Kiara. Ela caiu no chão, mingau e porcelana quebrada se espalhando por toda parte. Um respingo de líquido quente atingiu o antebraço de Gustavo. Ele fez uma careta, mas seus olhos, ardendo com uma fúria aterrorizante, estavam fixos em Kiara.
"Que porra você pensa que está fazendo, Kiara?!", ele rugiu, sua voz sacudindo o quarto.
Kiara recuou, fingindo choque. "Gustavo! Eu... eu só tropecei! Foi um acidente! Eu só estava tentando ajudar a Juliana!" Sua voz era estridente, tingida de falsa inocência.
"Saia daqui", Gustavo ordenou, sua voz mortalmente calma, um contraste gritante com sua explosão anterior. "Saia daqui, Kiara. Agora. E não me deixe ver seu rosto novamente hoje."
O rosto de Kiara se desfez. Ela me lançou um olhar venenoso, uma promessa silenciosa de retribuição futura, depois se virou e saiu correndo do quarto.
Arthur, que observava silenciosamente toda a troca, olhou para o pai, depois para mim. Seus olhos, geralmente cheios de uma indiferença pétrea em relação a mim, agora continham um brilho de algo novo: confusão, talvez até uma percepção de que a doçura de Kiara era uma fachada. Ele olhou para a porcelana quebrada, depois de volta para mim, uma pergunta silenciosa em seu olhar. Ele pareceu entender, naquele momento, que Kiara não era tão gentil quanto fingia ser. Seu rostinho se contorceu em uma batalha silenciosa de lealdades conflitantes.
Minha atenção, no entanto, estava totalmente em Íris. Eu a verifiquei, preocupada, certificando-me de que nenhum pedaço de porcelana ou mingau quente a tivesse tocado. Ela se agarrou a mim, abalada, mas ilesa.
"Você está bem?", Gustavo perguntou, sua voz tensa. Eu olhei para cima. Seu antebraço estava vermelho, já com bolhas onde o mingau quente o atingiu. Ele estava fazendo uma careta, ainda segurando o diário que sua irmã havia escrito.
Mais tarde naquela noite, depois que as crianças dormiram, encontrei um tubo de pomada para queimaduras no armário do banheiro. Hesitei por um momento, depois caminhei até o escritório de Gustavo. A porta dele estava entreaberta.
Ele estava sentado em sua mesa, o quarto mal iluminado por uma única lâmpada. O diário encadernado em couro estava aberto diante dele. Meu coração deu um pequeno salto. Ele estava lendo. Ele tinha lido. A verdade, finalmente, estava sendo absorvida.
Ele olhou para cima quando entrei, seus olhos avermelhados. Ele rapidamente, quase culpado, fechou o diário, enfiando-o sob uma pilha de papéis. Um brilho de algo - vergonha? arrependimento? - cruzou seu rosto.
"Íris me pediu para trazer isso para você", eu disse, estendendo o tubo de pomada. Era uma desculpa frágil, mas necessária. "Para sua queimadura."
Ele olhou para a pomada, depois para o meu rosto. Seus olhos ainda estavam inchados de chorar. "Obrigado", ele disse, sua voz rouca. Ele pegou o tubo, seus dedos roçando os meus. Uma faísca, um eco fraco do passado, estalou entre nós. Rapidamente, puxei minha mão.
"Você... você vai nos deixar de novo?", ele perguntou, sua voz mal um sussurro. Ele se levantou, contornando a mesa para ficar diante de mim.
Desviei o olhar, meu olhar vagando para as fotos emolduradas em sua mesa: uma Kiara mais jovem, sorrindo; Arthur bebê, aninhado nos braços de Gustavo. A vida que ele construiu, a mentira que ele viveu. "Eu tenho minha própria vida, Gustavo."
"Por favor, Juliana." Ele estendeu a mão, pegando as minhas. Seu toque era hesitante, quase suplicante. "Não vá. Fique. Fique aqui, comigo. Com nossos dois filhos."
Eu olhei para ele então, olhei de verdade. Seus olhos, antes tão frios e calculistas, estavam agora cheios de uma vulnerabilidade crua. "Posso te oferecer um emprego", ele disse, sua voz desesperada. "Qualquer coisa que você quiser. Salário alto. Uma posição de poder. Apenas... fique."
Seu aperto se intensificou. "Eu sei que não mereço. Eu sei que te machuquei além da reparação. Mas por favor, Juliana. Dê-me uma chance de me redimir. De ser uma família. De... de ser o que deveríamos ter sido." Ele olhou para mim, seu olhar intenso, cheio de uma mistura agonizante de amor e remorso.
Amor. A palavra tinha gosto de cinzas na minha boca. Houve um tempo, muito tempo atrás, em que essa palavra nos definia. Quando seu amor era meu universo, seu toque meu santuário.
Ele uma vez me chamou de sua âncora, sua estrela do norte. Ele disse que eu era a luz que o tirou da escuridão de seu passado, da pobreza, da dor. Éramos tudo um para o outro.
Mas aquele amor foi brutalmente assassinado, estrangulado por sua ambição, envenenado pelo ciúme de Kiara. Ele se transformou em um ódio amargo e ardente que alimentava cada respiração minha.
Sim, Gustavo. Você me ama. Você sempre amou, do seu jeito distorcido. E agora esse amor, misturado com sua culpa, será sua ruína. Será o combustível para minha vingança.
"Diga-me seu desejo mais profundo, Juliana", ele sussurrou, sua voz grossa de emoção. "E eu o darei a você. Qualquer coisa." Meus olhos encontraram os dele. Um sorriso frio e calculista tocou meus lábios. Era isso. A porta estava aberta. Eu estava dentro.