Depois de montar a primeira vez, não queria saber de outra coisa. A
melhor sensação do mundo é estar em cima de um cavalo e isso é ainda melhor
sendo com o Cometa. Não sei explicar, mas é um sentimento intenso. Sinto
que ele me entende.
Tinha acabado de levá-lo para dentro da baia e minha mãe apareceu.
Fechei a porta da baia e olhei para ela. Sorria olhando o Cometa, mas estava
distante dele.
É melhor assim. Ele não gosta que ninguém se aproxime. Não sei porque
me aceita. Até que agora ele deixa o Miguel colocá-lo dentro da baia. Antes ele
não gostava nem disso. E acredito que deixe somente por saber que é o Miguel
que vai soltá-lo para pegar sol...
- Está apaixonado, não é?
- Sempre fui, mas ele me fez ficar mais ainda.
Minha mãe sorriu e olhou o Cometa. A porta de cima estava aberta e ele
tinha a cabeça para fora e não tirava os olhos de mim.
- Ele parece ter adoração por você...
- É. Isso é estranho, não é? Só eu consigo fazer as coisas nele.
Escovação, limpeza de cascos e montar, é claro. As únicas coisas que ele deixa
o Miguel fazer é soltá-lo e colocá-lo de volta aqui dentro e claro, também deixa
ele colocar a comida.
Minha mãe riu bem-humorada.
- Claro que deixa colocar a comida. E em nada me surpreende ele gostar
de você.
- Só de mim - corrigi.
- Sim. Não me surpreende.
- Por quê?
- Os cavalos podem ver a alma das pessoas. Você deve ter muita luz,
meu filho.
- Como assim mãe?
- Você é muito sensível e puro, Daniel.
- Puro? - Dei uma risada. - Acho que não...
- Pureza nem sempre vem do que você pensa. Você é uma pessoa
honesta e verdadeira e isso te faz especial. Mais perto da luz. - Sorriu
calorosamente. - Mais perto de Deus.
Levantei as sobrancelhas.
- Só por não gostar de mentiras? Não sou nenhum santo, mãe.
- Eu disse que era?
- Não, mas não acho que seja desse jeito...
- Bem, talvez para o Cometa, seja - disse calma.
Olhei o Cometa e ele continuava me olhando. Não sei o motivo de ele
gostar de mim e não tenho como perguntar, pois ele não vai me responder.
Até porque se ele responder eu corro muito...
Os meses se passaram e eu continuava com a minha rotina. A diferença é
que agora eu treinava com o Cometa. Saltar com ele era tão fácil, que eu
comecei a pensar que os outros cavalos que usei estavam com preguiça... Mas o
Rodrigo disse que nós dois temos uma afinidade enorme e isso facilita muito.
Devo concordar com isso.
Também falei com meu pai sobre a ideia de dar aulas e ele ficou
extremamente feliz. Quem não gostou da ideia foi a Sabrina, pois assim eu
tinha menos tempo para fazer as vontades dela. Isso porque ficava muito
cansado depois dos treinos e aulas.
Estava explicando umas táticas aos meus alunos quando o Rodrigo
apareceu com um semblante estranho.
- Pode vir aqui?
- Que foi?
Ele passou a mão na cabeça com nervosismo. Pedi licença aos alunos e fui
com o Rodrigo para longe.
- Aconteceu alguma coisa?
- Seu pai ligou agora e...
- O que?
- Aconteceu uma tragédia... Desculpe, mas eu não sei como dizer isso
sem assustar.
- Já estou assustado, Rodrigo!
- Ok... Sua mãe sofreu um acidente de carro.
Senti o sangue sumir do rosto.
- Ela está bem?
- A batida foi muito violenta.
- Ela está bem, Rodrigo?
- Os dois motoristas não resistiram ao impacto - falou com um pesar
na voz.
Desviei o olhar. Minha mãe nunca deixava dirigirem para ela. Amava
dirigir e ir onde bem entendesse sem precisar de ninguém. Engoli em seco.
Talvez meu pai devesse ter insistido mais...
Fiquei desnorteado e sem saber o que fazer depois do que o Rodrigo me
contou. Tentei falar com a Sabrina, mas ela não me atendeu. Liguei para o meu
pai e ele disse que estava resolvendo tudo e para eu ficar tranquilo.
Como me pede uma coisa dessas?
Fui para casa e lá encontrei a Rosa. Ela me abraçou calorosamente e só
nesse momento eu consegui chorar. Fiquei tão sem reação com a notícia que
nem isso eu consegui fazer. Parecia mentira...
Umas horas depois meu pai ligou para avisar que estava tudo pronto para
o velório. Nesse tempo a Rosa ficou comigo e fez chá e algumas coisas para
comer, mas eu só consegui beber, nada que não fosse líquido passaria pela
minha garganta. Isso porque eu sentia como se ela estivesse apertada...
Rosa abriu a porta do apartamento. Estou tão avoado que nem ouvi o
interfone tocar... Erik e Júlio apareceram com ela. Eles se aproximaram de mim
e me deram um abraço apertado. Pelo menos meus amigos estão comigo nesse
momento, já a Sabrina...
Ela já deve estar sabendo. Já saiu até na televisão.
Essa situação é tão horrível que nem consigo conversar. Os dois falavam
baixo um com o outro ou com a Rosa. Mas eu fiquei em silêncio. Lembrava do
dia que minha mãe me deu a casa...
(...)
- Onde estamos indo?
- Deixa de ser curioso, menino! Já vai saber - disse sorrindo.
Apoiei o cotovelo na porta do carro e olhei para fora do vidro. Minha mãe
me tirou da cama dizendo que tinha uma grande surpresa, mas não quis dizer
qual era a surpresa e que eu veria com meus próprios olhos.
Suspenses me deixam nervoso...
Ela parou em frente a um portão e tocou o interfone. Será que me trouxe
para visitar alguma amiga? Espero que não. Porque sempre que me veem elas
ficam: "Nossa como ele cresceu!", "Já está um homem!".
Será que elas não sabem que isso é muito chato?
Assim que ela entrou com o carro, observei o local. Nunca vim aqui.
Olhei confuso para minha mãe e ela apenas sorriu. Depois de umas voltas pelo
condomínio, ela parou o carro em frente a uma casa.
- Vamos.
- Aonde?
- Chega de perguntas! - Saiu do carro.
Resmunguei contrariado e saí também. Segui minha mãe, que abriu a
porta da casa e entrou. Observei o local com curiosidade. Era grande e estava
vazio.
- Vamos dar uma olhadinha e me diga o que achou.
- Por quê?
- Eu disse sem perguntas.
Ela me mostrou todos os cômodos da casa e todos estavam vazios. A casa
era grande. Dois quartos no segundo andar, sendo suítes. Cozinha espaçosa,
sala de estar e outro banheiro no primeiro andar. E uma garagem grande.
- Gostou?
- É bem grande.
- E aconchegante?
- É - concordei. - É bem grande e aconchegante.
Minha mãe sorriu largamente quando falei isso. Franzi a testa. Ela estava
muito estranha!
- Que bom que gostou, filho, pois é sua.
Durante longos segundos fiquei encarando-a de boca aberta. Minha?
- Como assim?
- Essa casa é sua. Andei pesquisando e encontrei. Achei maravilhosa e
logo pensei em você.
- Mas eu não disse nada sobre casa pra mim...
- Sei que não, filho. Só que vai chegar um momento na sua vida, que vai
precisar de um lugar para viver com alguém.
- Sei, mas acho que isso está longe de acontecer.
- Mas já está garantido. - Piscou o olho pra mim.
- Isso é um absurdo, mãe!
- Não vai fazer desfeita com sua mãe, não é? - Cruzou os braços
fingindo estar brava.
Respirei fundo e olhei a casa de novo. Balancei a cabeça em negação.
- Tá... Talvez eu precise dela um dia, mas só quando realmente for me
casar ou coisa assim...
Ela sorriu largamente.
- Só me prometa uma coisa...
- O que?
- Só vai morar aqui com a pessoa que amar de verdade.
- Como assim de verdade?
- A pessoa que vai mexer com você de um jeito que você não vai
compreender nem a si mesmo.
Franzi a testa.
- Eu amo a Sabrina.
Minha mãe sorriu e se aproximou de mim apoiando as mãos nos meus
ombros.
- Ela te confunde de outras formas, querido. Estou falando de amor
verdadeiro.
- Acha que a Sabrina não me ama?
- Acho que ela ama a si própria e só isso.
Fiquei em silêncio. Às vezes ela age estranho, mas gosta de mim sim. Eu
acho...
- Promete?
- Tá bom. Prometo. Apesar de não saber do que você está falando.
Minha mãe sorriu e acariciou meu rosto.
- Acredite. Você vai descobrir.
(...)
Suspirei com a lembrança. Ainda não faço ideia do que é o que ela me
disse. Sabrina me deixa louco sim, louco de raiva, louco de fúria, entre outros.
O que mais me irrita é essa falta de consideração. Quando acontece algo ruim
com ela, vem direto me procurar, mas quando é para me ajudar, ela nunca pode.
Isso me faz pensar certas coisas...
Pensei em convidar ela para ir na minha casa. Mas ainda não tenho certeza
se vai ser boa ideia. Isso por causa do que a minha mãe falou em relação a ela...
- Vamos, cara?
- Onde? - perguntei perdido.
Não prestava atenção na conversa deles. Os dois trocaram olhares e a
Rosa se aproximou apoiando a mão no meu ombro.
- Seu pai já está na capela.
Depois de um tempo cheguei na capela que o corpo seria velado. Fiquei
do lado de fora por um bom tempo. A Rosa entrou. Acho que foi procurar
meu pai.
- Sinto muito mesmo, cara - disse Júlio tocando meu ombro.
- Eu também - falei baixo.
Meu pai apareceu com a Rosa e me abraçou apertado. Por algum motivo
eu não conseguia chorar mais. Ele derramava lágrimas silenciosas apoiado em
meu peito, mas eu não conseguia.
Fiquei o tempo todo no canto do local. Não conseguia me aproximar do
caixão. Vários parentes vieram falar comigo, tentando transmitir algum
sentimento, mas o único que eu sentia de cada um era pena e isso estava
começando a me irritar.
Passamos a noite na capela.
Na hora do enterro eu não consegui olhar. Fui o único que ficou distante,
até que a Rosa se aproximou de mim e segurou minha mão. Ela não falou nada
e agradeci mentalmente por isso. Não queria falar. Só queria ficar quieto e
fingir que esse dia não existiu...
Dois dias depois a Sabrina me ligou.
Não foi no enterro da minha mãe, não falou comigo nesses dias e muito
menos me deu força.
O que ela quer?
- Oi - atendi de modo frio.
- Oi... Será que a gente pode conversar?
- Sobre o que?
- Não quero falar por telefone, Dani.
Respirei fundo. Não saí de casa desde o terrível dia.
- Não vou sair de casa - falei com grosseria. Tenho muitos motivos
para nem atender a ligação dela.
- Posso ir aí?
- Você que sabe.
- Ok. Chego daqui a pouco.
- Tá. - Desliguei.
Deitei na cama e fiquei encarando o teto. Não sei porque ela não falou
comigo no dia que mais precisei. Só falta chegar aqui e começar a reclamar e
reclamar....
Meia hora depois ela apareceu e entrou no quarto, não antes da Rosa vir
me perguntar se podia.
Eu adoro essa mulher! Sempre pensa em tudo e claro, faz uma deliciosa
comida.
- Posso entrar? - Sabrina perguntou da porta.
- Sim.
Ela veio lentamente até onde estou e ficou de pé me olhando.
- Sinto muito, Dani. Não pense que te abandonei. Eu só tenho muito
trauma com enterros e funerais.
- Trauma de que? - falei seco.
- Quando meu avôzinho morreu eu sofri muito e fui no enterro dele.
Não dormi por uma semana por causa disso.
- Seu avô morreu quando você tinha cinco anos.
- Sim.
- Achei que já fosse adulta - falei irônico.
Ela apertou os lábios numa linha reta.
- Mas tem traumas que ficam pra sempre.
- Sabrina não precisa ficar inventando desculpas por não ter vindo aqui.
Eu entendo que sua vida está uma droga.
Agora ela ajeitou a postura ficando na defensiva.
- Não fale assim comigo.
- Falei alguma mentira?
- Chega! Eu vim aqui tentar me entender com você. Se não tem coração
eu vou embora!
- Eu não tenho coração? Sério? - falei agora com fúria. - Se tem
trauma ou a porra que for, pelo menos podia ter ligado! - falei alto.
Sabrina ficou em silêncio por um momento. Logo se aproximou de mim e
segurou minha mão com força.
- Por favor, me perdoa! Não quero brigar com você...
- Se não percebeu, a gente já está brigando...
- Então vamos parar! Sei que errei, mas eu não sabia o que fazer.
Situações assim me deixam assustada. Sabe que odeio mortes e violência...
Fiquei em silêncio olhando seu rosto. No momento não sei o que pensar.
Minha mente não está trabalhando direito depois do que aconteceu. Minha mãe
era uma mulher nova e cheia de saúde. Pensar que ela não vai mais me abraçar
ou me dar conselhos, dói demais...
- Tá.
Sabrina sorriu largamente e pulou em cima de mim, me abraçando.
Eu só quero que isso acabe logo...
Os meses se passaram depois da morte da minha mãe. Os meninos
estavam fazendo de tudo para me animar. Me chamavam para sair, ficavam
comigo no Haras, às vezes só ficávamos jogando conversa fora. Me sentia bem
com isso, pois depois que comecei a namorar a Sabrina, nos afastamos muito.
E ter meus amigos de volta era muito bom.
Não sei qual o problema da Sabrina dessa vez, mas encheu meu saco para
dormir comigo. Falei que tinha combinado de sair com os dois e isso deu uma
puta discussão! Ela começou a jogar várias coisas na minha cara. Coisas que
nem eram verdadeiras, como por exemplo, que estava sempre ao meu lado
quando eu precisava.
Disparei logo o acontecido depois da morte da minha mãe e ela começou
a chorar falando que eu era rancoroso.
Ainda tenho que ouvir isso!
No fim eu fiquei puto e cedi o que ela queria. Isso para parar de me
encher a paciência e não porque queria que ela viesse para cá.
Estava na sala vendo televisão quando ela chegou. Meu humor despencou
no momento em que ela sentou do meu lado e beijou minha bochecha, mas foi
de uma forma que nem eu entendi.
Talvez seja porque conseguiu me convencer a ficar aqui sendo que eu
queria sair... Não sei.
- Que bom que mudou de ideia...
Não respondi. Não quero discutir de novo.
- Sei que queria sair com esses garotos, mas também tenho direito de
ficar com você. Agora só quer saber deles.
- Eu realmente não quero falar disso de novo - falei de mau humor.
- Tudo bem.
Ficamos vendo o filme e por incrível que pareça essa foi a melhor parte da
noite, pois nesse momento, a Sabrina ficou em silêncio, o que me agradou
muito.
Depois ficamos juntos no quarto e ela dormiu. Eu não consegui dormir.
Pensava sem parar.
Não sei qual o problema comigo, mas ultimamente prefiro ficar com os
meninos ou mesmo sozinho do que ter que ficar com ela... Talvez eu tenha
ficado de saco cheio de suas manias e reclamações. Não sei e tenho medo de
pensar nesse assunto...
Sabrina resmungou alguma coisa me tirando dos pensamentos tortos.
Olhei para ela e ainda estava dormindo. Suspirei e olhei o teto. Será que não
gosto mais dela?
- Sim... - sussurrou eu a olhei de novo.
Estava com as mãos por baixo do travesseiro e percebi que segurava ele
com certa força.
Ela começou a resmungar coisas inteligíveis e eu fiquei observando com
vontade de rir. Ela sempre falou dormindo, mas por algum motivo, agora estou
achando graça. Sempre acordava com ela falando e ficava de mau humor.
Talvez eu esteja achando graça, pois estou acordado. Bem acordado...
- Mas preciso de dinheiro...
Franzi a testa. Pra que?