Parece que eu não havia mudado muito. Sorrio com melancolia. Sempre fui uma criança terrível e cheia de vontades, parece que a maturidade não mudou isso.
- Obrigada - estico minha mão para ele - Você tem seus próprios dilemas para resolver e eu trago mais alguns.
- Eu que agradeço. Vou agradecer todos os dias por ter me aceito novamente em sua vida. Sabe, há algo que preciso lhe contar.
Faço uma oração interna para que não seja outra tragédia. Eu já tive notícias ruins o suficiente para um só dia.
- Você não foi o único motivo para eu querer estar limpo.
- Não?
- Não - Kevin senta ao meu lado na cama - Eu conheci uma garota. Nós nos apaixonamos e ela ficou grávida.
- Meu Deus! Eu tenho um sobrinho?
- Eu não sei. Ela também era dependente de drogas. Disse-me que ia parar por causa do bebê e queria que eu fizesse o mesmo. Eu não acreditei nisso na época, achei que estava querendo me forçar a ficar com ela.
- Kevin.. - comecei a protestar - Era seu filho. Onde eles estão agora?
- Em qualquer lugar. Nem sei se ela está viva ou se cumpriu o que falou. Já presenciei tantas mulheres grávidas manterem o vício até o fim da gestação.
E prejudicam o feto terrivelmente. Desejo que a jovem tenha tido forças e cumprido a promessa pelo bem de seu bebê e que essa criança tenha mais sorte que Anne.
- Eu vou encontrá-los Jenny. Nem que passe a vida procurando-os.
- Faça isso. Quero ter meu sobrinho em meus braços um dia.
- Pode ser uma menina - sorri encabulado.
- O que você prefere?
- Que esteja bem e feliz. O sexo não importa.
Abraço-o com carinho e ficamos ali vendo TV sem realmente prestar atenção em alguma coisa. Cada um preso em seus pensamentos. Com esperanças de que possamos corrigir nossos erros e que a vida nos dê outra chance para recomeçar.
Jantamos e recordamos nossa infância. O tempo todo ele tenta me distrair de alguma forma. No
entanto, várias vezes me pego olhando para porta à espera de notícias.
≈≈≈
À noite chega e nos distraímos com um seriado na televisão. É uma série policial que por alguns minutos nos deixa entretidos. Após terminar, Kevin navega pelos canais em busca de algo que o agrade. Ele ainda está concentrado nisso quando Liam aparece no quarto.
Pulo da cama completamente angustiada. Eu olho para ele ansiosa. A inquietude perfurando meu estômago como ferro quente.
- Como ele está? Posso vê-lo agora?
- Seu estado é seguro. Pode vê-lo amanhã e apenas por alguns minutos.
Balanço a cabeça concordando e respiro aliviada. Venho esperando por essa notícia o dia todo.
- Obrigada Liam.
- Como você está? – examina meus olhos - Algum desconforto, dor ou ardência? Não deveria ficar vendo TV Jenny.
- Para seu acompanhante - suspira, frustrado. – Alguma enfermeira deveria ter avisado. Vou conversar com elas sobre isso.
- Não, elas não viram, na verdade nem prestei muita atenção eu juro.
- Tem que ser mais cuidadosa Jenny. A vida foi generosa com você, não estrague isso. O que aconteceu a você foi um milagre. Valorize!
Eu mereço o sermão. Não posso colocar em risco algo por que lutamos tanto. Algo que Neil desejou comigo com tanto ardor.
- Farei isso, serei mais cuidadosa. Eu prometo.
- Passe o colírio sempre que sentir ardência nos olhos. E descanse a vista o máximo que puder.
Não queremos mais complicações aqui. Certo?
- Certo doutor - brinco com ele.
- Fazendo piadas? - ri e acaricia meu cabelo - Isso é bom. Não digo nada apenas aceno e retribuo o sorriso.
- Até amanhã querida - diz ele, antes de sair.
Despeço-me dele, tento dormir como ele me aconselhou. Algo que se tornou difícil por causa da imensa ansiedade que tenho. Sinto a cama vazia e fria ao mesmo tempo. Olho para cama ao lado onde Neil passou os últimos dias. Kevin dorme tranquilamente.
Na última noite Neil estivera na minha cama comigo, beijando-me, abraçando e me levando ao paraíso. Antes que possa me conter, lágrimas inundam meus olhos e deslizam pelo meu rosto como cascata. Aperto a mão contra o peito na tentativa de conter a dor profunda que sinto ali. Entre um cochilo e outro me pego pensando em Neil e em como será encontrá-lo novamente.
Por volta das seis da manhã desisto de ficar na cama e vou para o banheiro. Tomo banho, lavo os cabelos e visto um vestido bege de algodão que havia em minha pequena mala. Já estou cansada da roupa hospitalar. Além disso, Liam disse que em dois dias me dará alta, então, tanto faz.
- Bom dia Jenny - cumprimenta Paige com sorriso caloroso.
- Você madrugou.
- Eu disse que viria cedo. Como está?
- Bem na medida do possível.
- Já teve alta? - pergunta ela, indicando o vestido.
- Não, mas já estava cansada daquela roupa.
- Alguma novidade?
- Liam disse que posso ver o Neil hoje, por alguns minutos.
- Isso é ótimo.
Tomamos café juntas enquanto esperamos Liam aparecer. Kevin acorda em seguida e insisto para que vá para casa. Neil o havia instalado em um flat no centro da cidade. Emociono-me ao lembrar como ele sempre pensa em tudo e como é generoso comigo.
- Como andam as coisas com Richard? - pergunto, assim que Kevin sai. Paige desvia os olhos dos meus e fixa-o na janela a sua frente.
- Não andam - suspira ela - Não sei como as coisas chegaram a esse ponto. Como chegamos a nos odiar.
- Você ainda é apaixonada por ele, não é? Por que não diz?
- As coisas são mais complicadas do que pensa - murmura ela, seca -As acusações que me fez, ainda martelam em meu peito.
- Não faça como eu Paige. Não espere perder para perceber o quanto ainda ama-o.
- Não se perde aquilo que nunca teve - sussurra ela - Não quero falar sobre isso.
Eu não insisto, não tenho esse direito. Estarei pronta para ouvir quando ela quiser se abrir. Tenho certeza que há muito amor entre eles dois, nunca vi casal mais apaixonado. O que havia começado como uma brincadeira se transformou em algo profundo e Paige se arrependerá pelo resto da vida se desistir disso.
Mudamos de assunto e conversarmos coisas triviais enquanto espero impacientemente que Liam venha me buscar. Tenho vontade de sair do quarto e ir sozinha até a UTI, mas ao mesmo tempo tenho medo. Resolvo agir de forma coerente e madura, minhas ações intempestivas já causaram muitos danos até aqui, talvez alguns irreparáveis.
Por volta das oito horas, e eu já ao ponto de enlouquecer vejo Liam entrar no quarto.
- Vamos?
- Sim.
Seguimos pelos corredores praticamente vazios, exceto por algumas enfermeiras e médicos que passavam por nós eventualmente. Passamos novamente pela porta de vidro e logo estamos em uma área restrita. Paramos em frente a uma porta. Uma placa indica que estamos na sala de UTI. Liam me entrega um avental e uma máscara.
- Tem que usar isso - orienta.
Ajuda-me a vestir e entramos no quarto em seguida. Meus olhos vagueiam por suas feições pálidas: queixo quadrado marcado por algumas escoriações, a curva dos lábios cheios com um pequeno corte, linha reta do nariz aparentemente intacto, maças do rosto roxeadas. E o que mais me chocou, foi ver sua cabeça em volta de uma enorme faixa. Seus lindos cabelos haviam desaparecido em um lado da cabeça.
- Neil! - choro silenciosamente para não perturbá-lo mais.
Ver o homem que amo sempre cheio de vida e mandão em um estado tão frágil me destrói completamente.
- Volte para mim - sussurro através da máscara - Por favor, querido, volte.
Seguro sua mão entre as minhas. Olho para o pé erguido e engessado. Eu rezo para que seja o único dano.
- Eu te amo.
Sinto uma mão apertar meu ombro.
- Temos que ir agora. Consegui apenas cinco minutos.
- Só mais um pouquinho Liam - imploro.
Ele olha para porta como se esperasse que a qualquer momento alguém apareça e nos arraste dali.
- Dois minutos.
Pouco tempo para quem anseia pela eternidade. Lembro-me das palavras de Neil na manhã anterior. A eternidade seria tempo muito curto, agora entendo a veracidade de suas palavras. Curvo- me e beijo sua mão macia. As lágrimas descem abundantes pelo meu rosto.
- Eu voltarei - sussurro - Prometo.
Saímos do quarto e minha vontade é de voltar e ficar perto dele até que abra os olhos.
- Ele ficará bem não é?