Corri com Malu para dentro do elevador e assim que cheguei no meu quarto mediquei-a com benegripe e dipirona, estes era alguns dos medicamentos que não tirava por nada da bolsa. Em seguida dei-lhe uma chuveirada fria e a vesti com peças de roupas frescas, tudo isso numa tentativa falha de baixar sua temperatura, que oscilava de momento em momento. Queria parecer forte por fora, mas por dentro já estava entrando em colapso, essa sem sombra de dúvidas era uma péssima hora para minha irmã passar mal.
- Malu, você ainda tá com febre. Tá sentindo alguma dor? - perguntei baixinho, passando as mãos entre os fios encaracolados.
- Eu não tô conseguindo respilar direito... O ar não enta... - murmurou baixinho com os olhinhos negros reluzindo a aflição que ela estava sentindo. Eu comecei a ficar angustiada, relembrando que essa não era a primeira vez que Malu reclamava da dificuldade de respirar, várias vezes levei-a no postinho do bairro para tratar esse mal, mas tudo que eles faziam era receitar vitamina C e colocá-la por alguns minutos no nebulizador.
Agora estou com o coração apertado, desconfiada que isso não é uma ocorrência amena como o médico que nos atendeu pela última vez havia garantido.
- Tem certeza Malu? Você realmente não está conseguindo respirar?
- Tô, mais tá doendo... - ela murmurou cabisbaixa e logo as lágrimas começaram a gotejar de seus olhos.
- Vou te levar agora pra UPA! - Preocupada, me troquei, peguei minha bolsa e não esperei mais um único segundo para pedir um Uber, não costumava me dar esses "luxos", porém depois da grana que aquele cara me deu eu não pensei duas vezes em agilizar o atendimento da minha irmã. E, já que estava me dando o luxo de não andar de ônibus resolvi que Malu também precisava ser atendida por um bom médico e receber um tipo de tratamento eficaz e mais adequado. A UPA estava longe de ter um atendimento superior aos postinhos do meu bairro, muito pelo contrário, com certeza eu teria que virar a noite na sala de espera aguardando algum médico para colocá-la no nebulizador e receitar mais vitaminas C com havia ocorrido anteriormente. No entanto hoje seria diferente, afinal de contas aquele cara me deu a grana justamente para tratar da saúde dela, e era exatamente isso que eu faria.
Pedir para o motorista do aplicativo desviar o rumo e seguir para um hospital privado. A apreensão ficou me remoendo durante o percurso, desde que Malu reclamou da dificuldade de respirar eu criei uma pequena obsessão pelos seus ofegos, o barulho do ar enchendo e esvaziando seus pulmões soava como uma trovoada que a cada falha me deixava alarmada. Assim que chegamos ao hospital segui para a recepção solicitando o atendimento de um médico. Aguardamos um pequena fila até que fôssemos chamada para a consulta, lá eu contei para o doutor que as dificuldades respiratórias da minha irmã acontecia com uma certa frequência, mas nunca chegou ao ponto de incomodá-la como hoje.
Ele a deitou sobre a maca, tirou sua blusa e analisou seu batimentos.
- Sua irmã sofreu alguma pancada, caiu em algum lugar?
- Não! Por quê... - Não precisei de uma resposta, no instante que meus olhos pairaram sobre a barriga dela enxerguei algumas manchas azuladas marcando sua pele. Olhei-a com mais atenção e percebi que havia uma na sua coxa direita e outra entre os seios, próximo ao pescoço. - Doutor, o que isso significa? - perguntei com o coração apertado.
- Significa que sua irmã vai precisar fazer alguns exames.
- Mas vai ficar tudo bem? Você tem alguma suspeita do que seja?
- Vamos aguardar os exames para que eu possa te dar uma resposta mais concreta - ele afirmou sério.
- Tudo bem, mas... eu posso acompanhar os exames?
- Claro, irei encaminhá-las.
Engoli em seco observando minha irmã com a feição tristonha, os olhinhos negros estreitados e caídos, sua boca estava entreaberta buscando auxílio para sugar o ar; hoje não vi um único sorriso cruzando seus lábios. Não me lembro de a ter visto tão para baixo, provavelmente estava sentindo dores e muito incômodo, enquanto eu estava aqui, impotente, sem poder fazer nada além de orar e pedir a Deus para que a única pessoa que tinha na minha vida ficasse bem, e não me deixasse sozinha como mamãe fez. Depois que ela partiu os problemas só cresceram, e por mais que eu me desdobrasse para contê-los eles só faziam se multiplicar cada vez mais.
Tinha medo de pensar no futuro porque o presente não estava colaborando em nada para que as coisas ficasse bem daqui a um tempo. Bastava olhar para as circunstâncias, os fatos, para conseguir me enxergar no fundo de uma cela lotada em alguma penitenciária, e Malu... Por Deus, Malu está com os mesmo sintomas que mamãe estava antes de infartar.
Se algo acontecer com ela serei a culpada por ter tapados os olhos, sendo egoísta com o único intuito de evitar meu sofrimento sem ao menos pensar no dela.
O que estou fazendo agora já deveria ter feito há muito tempo.
O que vai ser da minha irmã? O que vai ser de mim sem ela...
Respirei fundo sentindo as lágrimas rolarem pelas maçãs do meu rosto. Aflita, fiz questão de acompanhá-la pela triagem, assistindo com o peito doendo cada exame que ela realizava. Foram feitos uma bateria de exames, inclusive alguns cardiovasculares. Em seguida aguardei os resultado vendo-a desesperada olhando para a agulha do soro que a medicaram. Horas depois o resultado ficou pronto e novamente fui encaminhada para a sala do doutor Lucas, o médico que nos atendeu anteriormente.
Ele era um senhor alto de pele clara, cabelos grisalhos e grandes olhos castanhos que agora parecia um poço de mistério.
- Gabriela, alguém da sua família já teve algum problema no coração?
Sua pergunta me atingiu como um açoite. Sim, mamãe tinha um problema no coração inclusive foi esse problema que tirou sua vida.
- Sim...
- Serei direto com você, sua irmã tem uma Cardiopatia Congênita que deveria estar sendo tratada desde quando ela ainda era um feto na barriga da sua mãe.
- Minha mãe morreu disso! - exclamei involuntariamente com os olhos cheios d'água.
O silêncio reinou na sala e por vários segundos o único barulho que havia era o da respiração ofegante de Malu, que só serviu para ampliar meu desespero.
- Eu sinto muito. - Ele deu uma pequena pausa antes de prosseguir. - O tratamento da sua irmã precisa ser iniciado o quanto antes. Eu sou um médico pediatra, por isso irei te encaminhar para um cardiologista que é o especialista nesse assunto, mas irei receitar alguns medicamentos que irão diminuir o desconforto da respiração e a ajudar na oxigenação do sangue. Mas isso é provisório, procure o doutor Cláudio que ele irá te orientar melhor. Faça isso o mais rápido que puder. - Pela entonação e o olhar sério, a ponto de soar como uma ameaça entendi por mim mesma que o caso da minha irmã era extremamente grave.
Antes de deixar a sala guardei a receita com os remédios e o cartão com o nome do doutor indicado na bolsa, fiz questão de agradecer o médico que nos atendeu, apesar de ser rude ele foi direto e, era isso era o que eu realmente precisava naquele momento. Levei um susto quando fui acertar as contas do hospital, a consulta, o soro que Malu ficou por algumas horas e a bateria de exames me custaram uma fortuna. Aquele homem havia me dado 3 mil reais pela manhã, e desse dinheiro não restou quase nada. Iniciei uma prece interna, implorando a Deus para que esse pequeno valor que ainda tinha em mãos desse pelo menos para comprar os remédios que o doutor receitou, caso contrário não teria valido de nada minha ida naquele hospital caro. Na farmácia gastei muito mais do que minhas contas permitiam. A grana que havia separado para pagar o aluguel do quarto por mais uma semana junto com as quentinha do almoço e do jantar se foram. O que me sobrou mal dava para pagar um Uber, voltei de ônibus, perdida no meio daquela aflição, não conseguia pensar em outra coisa que não fosse fazer um plano de saúde para Malu, somente assim os custos seriam reduzidos. De qualquer forma ainda havia os remédios, alimento, moradia...
Não dava para voltar para Araruama agora. Eu não fazia ideia de como estava minha situação, tudo que sabia era graças as notícias de um blog local que costumava acessar com frequência, até o momento nada referente aquele assunto tinha vindo à tona. Por um lado eu ficava mais calma, por outro alimentava o pânico dentro do coração. Tinha medo de estar envolvida em algum tipo de investigação policial oculta ou até mesmo de estar sendo perseguida pelos comparsas daquele desgraçado.
O dinheiro que ganhava com as balas não dava para arcar com todos esses custos, assim como nenhum outro trabalho com salário-mínimo.
[...]
Quando cheguei no prédio o síndico me devorou com os olhos, ontem eu tinha dado minha palavra que faria o pagamento do quarto - que modéstia parte já estava atrasado - hoje.
Desviei meus olhos dos dele e corri na direção do elevador, onde aguardei ansiosamente sua chegada. Levou alguns minutos, mas assim que ele parou entrei dentro do cubículo, apertei o número do andar determinada a subir, porém fui impedida pelo braço de um homem que o colocou entre a porta impedindo-a de se fechar.
- Gabriela, onde você pensa que vai?
- Estou indo para o meu quarto...
Ele me cortou imediatamente.
- O quarto que você não paga há mais de dois dias? - Franziu o cenho arqueando as sobrancelhas ameaçadoramente. - Saia do elevador, vamos conversar Gabriela.
- Eu prometo que até amanhã te dou o dinheiro - falei sem graça, não conseguindo olhar diretamente para ele.
- Você me fez essa mesma promessa ontem. Estou acostumado com gente do seu tipo, as pessoas pensam que só porque o prédio é mal falado podem fazer o que querem aqui! Você não estava vendendo balas? Cadê o dinheiro?
- Minha irmã passou mal... Eu gastei tudo que eu tinha com consulta, exames, remédios...
- Quer mentir pra mentiroso? Essa menina tá ótima!
- Não. - Malu se meteu ainda muito fraquinha - Eu tô dodói...
- Nem tente me manipular! - o síndico ignorou minha irmã que estava pálida e visivelmente mal de saúde, o que me deixou fervendo por dentro. - Gabriela, o que eu fiz por você eu nunca fiz para ninguém. - Segurei-me para não revirar os olhos. - Coloquei você e sua irmãzinha, duas desconhecidas que ninguém sabe os precedentes para morar num dos meus quartos, e como agradecimento você me recusa a me pagar as diárias. Pague o que me deve ou saia daqui agora!
- Eu não tenho dinheiro...
- Aqui não é casa de caridade! - exclamou com a voz firme, os olhos intimidantes estreitados. - Vou te dar meia hora para você descer com suas coisas, caso contrário eu mesmo faço questão de ir lá em cima e jogar tudo que lhe pertence pela janela!
Não tive outra escolha senão balançar a cabeça assentindo. O síndico saiu da porta do elevador e me deixou subir. Com coração apertado, sentindo a humilhação pairar sobre meus ombros como um ácido.
- Mana, a gente vai pa rua? Tá chovendo...
- Vamos. Mas vai ser só por hoje, eu prometo. - A humilhação e a vergonha me corroía de uma maneira que até mesmo a coragem de olhar nos seus olhos eu havia perdido. No quarto recolhi todos os nossos pertences - que era praticamente quase nada -, e saí angustiada. Cada andar que o elevador descia fazia com que um nó se apertasse em meu peito. Na portaria o síndico fingiu não me reconhecer e virou o rosto quando me viu atravessando a porta do prédio com minha irmã doente nos braços, caindo diretamente debaixo de um pé d'água.
Tudo que eu tinha naquele momento era uma sombrinha que não cumpria bem o seu dever de nos proteger da chuva, também pudera, estávamos no meio de um vendaval com muita ventania. Tive que me desdobrar para que Malu não pegasse aquela chuva, mas não adiantou muito. Atravessei a avenida com ela sendo banhada pelo temporal, quando chegamos na calçada do outro lado parei frente a um banco onde havia alguns moradores de rua deitados sobre pedaços de papelão. Não vou negar. Doeu. Doeu muito me ver naquela situação, me equiparando a pessoas largadas, sem teto, sem um lar para ficar. Aquilo foi um choque de realidade, eu estava ciente de que as coisas não seriam fáceis desde o dia que fugi de casa de maneira desesperada, mas em nenhum momento imaginei que fosse chegar a esse ponto: Eu e minha irmã doente, largadas na rua sem nenhum tostão no bolso, como se fôssemos duas mendigas. Mas isso não era nada quando eu me lembrava que seus remédios não durariam mais que uma semana, também não sabia o quanto ela aguentaria sobreviver em meio a essa situação precária.
Eu precisava fazer algo, mas enquanto eu não enxergava uma solução tudo que me restou foi apertar Malu em meus braços observando as gotas grossas da chuva baterem contra o asfalto, minhas lágrimas fazia o mesmo no piso áspero da calçada.