Não consegui dormir direito, a tensão gerada pela ansiedade era tanta que fiquei elétrica pelo restante da madrugada e, quando finalmente o sono bateu meu celular despertou me lembrando o horário certo para dar mais remédios para Malu. O sono dela era invejável, minha irmã apenas abriu a boca para tomar os comprimidos e logo em seguida voltou a dormir como uma pedra.
Levantei-me para ir ao banheiro e no momento em que fui lavar as mãos me deparei com o espelho, vi meu reflexo mais vívido e medonho do que nunca. Enxerguei uma assassina, um projeto de puta. Não era mais eu. A cada dia deixava para trás minha parte mais sensível e humana, a vida estava me lapidando de uma maneira tão impiedosa que me fazia temer o que seria de mim no futuro.
Quem seria Gabriela daqui a alguns anos? Ou melhor, o que seria da Gabriela depois da noite de hoje?
Na maior parte do tempo eu travava uma guerra comigo mesma para evitar esses pensamentos, mas infelizmente era mais forte que eu. Não dava para evitar pensar no que estava predestinada a fazer. Era impossível não ficar pensando em como seria sensação de transar pela primeira vez com alguém da qual eu nunca tinha visto, de alguém que obviamente não teria o mínimo respeito por mim, porque lá, obviamente eu não passaria de um objeto para satisfazê-los, de uma mercadoria paga da qual eles poderiam se aproveitar de todas as maneiras possíveis.
O restante da noite foi longa, mas aos poucos os raios de sol iluminaram a sala e consequentemente o colchão onde Malu e eu estávamos deitadas, fiquei surpresa ao ouvir um barulho na cozinha e descobrir que Jurandir já estava acordado.
- Bom dia gatinha! - exclamou com um sorriso grande estampando seus lábios. - Vamos só tomar café pra gente iniciar seu dia de princesa! Vamos no salão e em alguma loja por aí comprar alguma coisa para você. Vamos tirar o dia para investir na sua beleza!
Sorri surpresa.
- É sério isso?
- Seríssimo e, não se preocupe com o dinheiro, vai ser tudo por minha conta.
- Obrigada, mas, e a Malu? Eu não posso sair por aí e deixar ela sozinha no estado que está.
- Gata, não se preocupe, está tudo sobre controle. Já conversei com dona Geralda, minha vizinha e, ela disse que pode ficar com a menina enquanto você trabalha.
Desconfiei. Desde o acontecimento na casa de papai tornei-me bastante insegura em tudo que era relacionado a minha irmã, deixá-la nas mãos de uma estranha não me parecia uma boa alternativa. Ninguém lhe daria a atenção e os cuidados necessários que eu lhe prestava o tempo inteiro. Infelizmente minha desconfianças e o medo insano de perdê-la não me permitia fazer isso.
- Não vai rolar. Não posso deixar a Malu com uma pessoa que nunca vi na vida.
- Deixa de ser boba, se a dona Geralda não fosse confiável eu nem faria essa sugestão para você. Todo mundo aqui no prédio conhece e a adora, quando eu cheguei aqui ela já morava no 407 há 30 anos e ninguém tem nada do que reclamar dessa senhora. Mas, se for te deixar mais calma posso apresentá-la para vocês conversarem melhor.
- Hum... ela já olhou alguma criança aqui no prédio?
- Várias.
- Eu quero conhecê-la, preciso conversar com ela primeiro.
- Tudo bem, vou chamá-la para vir aqui tomar um café, até bom que vocês se conhecem.
Jurandir cumpriu o combinado e convidou dona Geralda para tomar café e comer misto quente com a gente. Há pessoas que você consegue decifrar através do olhar e, aquela senhora era uma dessas. Ela passava uma leveza, uma serenidade que há muito tempo não via em ninguém. Os fios completamente brancos sob sua cabeça e a pele flácida marcada por linhas finas e rugas ao redor do rosto denunciava que ela era uma mulher vivida, cheia de experiência, inclusive em nenhum momento da conversa nos poupou das suas muitas histórias nos seus 73 anos de idade.
- Meu marido se tornou minha única companhia depois que Luciana foi embora para Londres com o noivo.
- E ela não voltou nem no velório do próprio pai?
- Ela disse que não chegaria a tempo, mas de qualquer forma eu já havia avisado que Honório estava muito doente, ela poderia ter vindo antes para ver o pai, mas não fez questão... De qualquer forma eu já me conformei de que nunca mais verei minha única filha. - Consegui sentir sua tristeza pelo tom embargado. Dona Geralda terminou o misto quente e tomou a xícara de café num único gole. - Aqui no prédio todo mundo sabe que eu adoro crianças, olho, cuido, bordo roupinhas e tudo. É até bom que eu não fico sozinha o tempo todo.
- Mas a Malu está com um problema sério no coração, ela é uma criança que requer mais cuidados que as outras.
- Coitada, tão novinha e já está com esses problemas...
- Mas ela vai melhorar - afirmei confiante. - Vou começar a trabalhar para manter o tratamento dela. E claro, irei pagar a senhora pelas noites que vai ficar com a Malu, mas não se preocupe, ela é super obediente, quase não dá trabalho, a senhora só vai precisar programar seu celular para despertar no horário certo dos remédios. Sem falta.
- Não precisa me pagar.
- Precisa sim, faço questão.
Depois de passar alguns minutos conversando, dona Geralda pediu para conhecer Malu e, como esperado a senhora se encantou por ela, minha irmã agiu com reciprocidade. Ela também me convidou para conhecer seu apartamento que era repleto de decorebas e artesanatos que fazia para vender e até mesmo se distrair. Dona Geralda tinha uma coleção enorme de bonecas de pano, Malu ficou completamente hipnotizada quando viu uma Emília e não se conteve em correr na sua direção e conversar com a boneca como se fosse uma menininha. Eu amava vê-la assim, leve, sorrindo e, no momento isso era única coisa que me dava forças para seguir e ir além dos meus limites. A manhã passou num sopro, quando deu meio-dia ainda estávamos distraídos vendo as artes que a senhora nos mostrava cheia de orgulho, iríamos almoçar miojo no apê do Jurandir se ela não tivesse nos convencido de ficar para almoçar e experimentar o almoço simples, mas divino que ela havia preparado.
Deixei tudo que era de Malu - pouquíssimas coisas - com dona Geralda e, saí tranquila, confiante de que com ela minha irmã estaria segura e bem cuidada. Criei a mania de tapar o rosto disfarçadamente enquanto caminhava pelo centro. Talvez eu estivesse paranoica já que até o momento nada relacionado aquela história havia rendido, porém, qualquer precaução era mínima. Nas lojas além dos vestidos colados que marcava bem meu corpo eu também experimentei lingeries sexys e cavadas que jamais pensei que usaria. Depois das compras seguimos para um salão onde fiz as unhas, o cabelo e uma depilação completa. Quando tudo acabou me olhei no espelho me sentindo linda, exuberante, fazia tempo que não me cuidava daquela forma e, não era por falta de vaidade, meu problema maior sempre foi a falta de dinheiro.
Jurandir e eu preparamos uma mala com as coisas que ele levaria para a "casa" daqui algumas horas e, meu corpo já começava a agir com antecedência. Meus batimentos já não eram os mesmos, de minuto em minuto eu era surpreendida por uma fisgada angustiante no coração que me causava calafrios.
- Na primeira noite é assim, é impossível não ficar nervosa, mas depois tudo flui querida, logo você se acostuma. - Meu nervosismo era evidente, por isso não tinha um instante que Jurandir não me prestava palavras de apoio, tentando me acalmar de todas as maneiras.
- Eu sei... De qualquer forma não se preocupe, eu não vou desistir. Não tenho escolha.
Ele respirou fundo, meio sem graça e rapidamente se esquivou daquele assunto.
- Vou te dar algumas dicas. Isso aqui são algumas coisas que toda GP precisa ter na bolsa: - ele apontou para uma necessaire -, camisinha, lubrificante, lenço umedecido, chuca, listerine pra lavar a boca depois de mamar e beijar o cliente...
- Mas espera aí! Você beija os clientes, ouvir dizer que nenhuma garota de programa faz isso.
- Com certeza quem te falou isso foi alguém que só frequenta puteiro de esquina. Meu amor, lá na casa os clientes pagam caro e por esse motivo podem fazer o que quiser com nossos corpinhos.
- Mas e se eles me machucarem, forem nojentos...
- Você pode interromper o programa, mas aí o cliente terá o cachê reembolsado, por isso te aconselho a ser forte e ir até o final. Mas, não se preocupe, raramente essas coisas acontecem, a maioria dos clientes só querem transar mesmo, outro detalhe importantíssimo, a maioria deles ama um anal, vou deixar essa pomadinha com você. - Ele me entregou a pomada escrito xilocaína.
- O que é isso?
- É um anestésico, se você usar da maneira correta não vai sentir nada na hora. Mas se o cliente perguntar o que você está passando diga que é só um lubrificante, nunca fale que é uma pomada anestésica. Ok?
- Ok.
- O resto eu tenho certeza de que você vai aprender na prática, daqui uns dias dará aulas. - Ele piscou maliciosamente para mim.
Forcei um sorriso, mas por dentro já estava desmoronando, desesperada.
Antes de sairmos fiz questão de passar no apartamento de dona Geralda mais uma vez só para ter a certeza de que ela e Malu realmente estavam se dando bem. Minha irmã estava ótima, bem alimentada, medicada, feliz e sorrindo, antes de lhe dar as costas eu a peguei no colo e a envolvi no abraço mais caloroso que já dei em uma pessoa, de repente lágrimas começaram a correr pelos meus olhos no mesmo ritmo que meus lábios tremiam e aquele maldito nó alojado no meu peito se apertava.
- Mana, voxê tá dodói? - ela falou baixinho, me acariciando com a mão pequena e suave. - A tia Gelalda vai te dar remédio e voxê vai ficar boa que nem eu.
- Não meu bem, não existe remédio capaz de curar minha dor, mas só de saber que você está bem e cuidada eu fico melhor. Você sabe que eu te amo, né? Você é tudo que eu tenho minha coisa fofa. - Apertei-a com mais força entre os braços, colei meu rosto no dela respirando fundo, buscando coragem para o que eu iria fazer depois de deixá-la. - Agora eu vou ter que ir, se comporta. - Coloquei-a sobre o chão vendo seus olhinhos brilharem enquanto lhe dava as costas.
- Tchau mana, bom trabalho! - Não tive coragem de olhar para trás, mas notei que seu tom era de felicidade. Ela não tinha a menor noção do que eu iria fazer, por isso estava torcendo por mim. Engoli o bolo que estava preso em minha garganta e saí, angustiada, com o medo e a culpa me corroendo, me devorando até a alma.