Sempre fui friorenta por natureza, mas os calafrios que varriam meu corpo agora era algo novo e insuportável, a ponto de fazer minhas pernas tremerem e os pelos dos meus braços se arrepiarem. Havia uma manta fina dentro da minha bolsa que obviamente fiz questão de enrolá-la em Malu, até minha irmã ficar parecida com um pequeno embrulho. A prioridade era ela, mas droga, não tinha como ignorar um frio desses largada numa calçada, ainda mais numa madrugada chuvosa. Não era preciso citar os inúmeros motivos da minha insônia, com exceção de um inédito que havia acabado de surgir: o medo. Eu estava num lugar estranho, cercada de pessoas estranhas.
Até o momento ninguém veio falar comigo e eu só tinha que agradecer por isso.
Altas horas da madrugada e minha cabeça dava um nó de desespero. Não dava para ficar nessa situação, na verdade, se eu estivesse sozinha não me importaria tanto, o problema mesmo era a Malu que era apenas uma criança e, ainda por cima doente.
Não tinha como não pensar na proposta daquele homem...
"Serei direto. Eu quero você na minha cama. Disponível a hora que eu quiser. Vou pagar bem, quanto a isso não se preocupe, você e sua irmã terão uma vida de luxo."
Seria errado.
Humilhante.
Mas se ele ainda estiver disposto eu estou pronta.
Rapidamente revirei minha bolsa procurando o cartão que ele deu para Malu no dia que nos encontramos na avenida, fiquei um bom tempo procurando aquele pedacinho de papel e depois de longos minutos desisti. Desisti apreensiva, inconformada, lutando contra o desespero que aumentava no mesmo ritmo que meus batimentos cardíacos. Meu nervosismo foi tanto que eu não resisti em acordar minha irmã.
- Malu, Malu! - Ela estava deitada no degrau que dava entrada para uma agência bancária, encasulada numa manta quentinha. Malu dormia docemente, o que já me deixava mais tranquila, porque aquilo significava que os remédios estavam surtindo efeito, eu tinha medo de algum efeito colateral, mas só de vê-la dormindo como um anjinho me deixava mais sossegada.
Era uma pena, mas com o coração doendo eu a acordei e sussurrei no seu ouvido:
- Mana, cadê o cartão que você pegou daquele moço bonito aquele dia? - Malu abriu e fechou os olhos no mesmo segundo. Tive que sacudi-la e repetir a pergunta mais uma vez para obter alguma resposta.
- Eu joguei fora...
Interrompi-a com a voz embargada:
- Po... - Engoli o palavrão que por pouco não soltei e continuei a questioná-la. - Por que você fez isso Malu?
- Voxê ficou bava e bigou comigo... - Ela bocejou e esfregou os olhinhos antes de continuar - Eu não quelia ter te desobedecido...
Apoiei as mãos contra o piso sujo e levemente úmido da calçada, deixando meus ombros, tronco e cabeça caírem para baixo me sentindo a pessoa mais idiota e derrotada do planeta. Droga! A oportunidade havia batido na minha porta e eu a rejeitei por puro orgulho e um complexo dissimulado de dignidade. A culpa não era da Malu, nunca foi. A culpa era minha por ser burra, ingênua a ponto de acreditar que todos os meus problemas se resolveriam num estalar de dedos, apenas com uma prece. A realidade era dura e cruel, se eu não me adaptasse a ela acabaria no limbo em questão de dias. Eu tinha que mudar isso. Varri ao redor com os olhos, vendo alguns carros cortarem a avenida, moradores de rua dormindo pela calçada, raramente se via alguém caminhando pelo centro naquele horário, mas, ainda assim, havia quem se arriscasse. Eu tenho certeza de que assim que o dia raiasse aquelas pessoas largadas a minha volta começariam a pedir esmola na frente do banco, eu até poderia fazer isso se o tempo não fosse meu maior inimigo. Se nem vendendo as balas no sinal eu seria capaz de acumular tanto dinheiro para manter o tratamento da minha irmã, imagina pedindo esmola em frente a uma agência bancária? Fora que esse tipo de exposição no mesmo lugar sempre, acabaria demarcando minha cara, algo que não poderia acontecer de nenhuma maneira.
- Gabi? - Estava distraída quando ouvi meu nome por uma voz que logo reconheci.
- Michelle? - perguntei desconfiada, das poucas vezes que a vi estava montada, com direito a salto alto, muita maquiagem e uma peruca do babado, mas agora ela... Ou ele... Parecia um homem comum. Alto, ombros largos, lábios carnudos que se destacavam tanto em seu rosto como os enigmáticos e profundos olhos castanhos, o cabelo estava bem cortado e a roupa que ele/ela usava era de um cara despojado.
- Jurandir - corrigiu-me. - O que você está fazendo na rua, a essa hora com uma criança?
- Adivinha...
- Deixa eu ver... Você não pagou o aluguel do quarto e foi jogada na rua!
- Isso.
- Por que você não falou comigo, gata?
Bufei cansada, com a tristeza ditando minhas palavras.
- O dia hoje foi tão tenso, tão chato, que na hora que o Valmir me mandou ir embora do prédio eu não consegui pensar em nada. Eu estava zonza, ainda estou, na verdade... Sem contar que você já me ajudou demais, não quero me tornar um peso nas suas costas.
- Você não é um peso. Eu também já passei por dificuldades nessa vida, já fui humilhada, esculachada, mas tiveram algumas poucas pessoas que me estenderam a mão e me ofereceram ajuda quando mais precisei. Sou grata até hoje por quem me ajudou, e não consigo de nenhuma maneira ficar de braços cruzados vendo alguém na sua situação, ainda mais com uma criança. Anda, levanta daí e vamos pro meu apê, lá é apertado, mas cabe duas pessoas e meia tranquilamente.
Olhei para Malu que desde o momento que a despertei não fechou mais os olhos e depois para Jurandir, emocionada, com as lágrimas já traçando um caminho por minhas bochechas até pingarem na calçada.
- Eu nunca vou conseguir te agradecer por tudo que tem feito por mim.
- Não precisa meu bem, tudo que eu faço é de coração, sem esperar nada de ninguém.
Sorri para ele secando minhas lágrimas. Fiquei de pé, recolhi minhas coisas, apanhei minha irmã e segui ao lado de Jurandir até o prédio. Valmir não ficava na portaria nesse horário, o que diminuiu bastante meu constrangimento.
O apê dele até que era bem aconchegante para uma pessoa viver sozinha. Havia uma suíte, um lavabo, cozinha americana que ligava à sala e uma pequena varanda com aquela típica vista urbana do centro da cidade. Jurandir colocou um colchão macio no piso da sala, ele também trouxe edredom e travesseiro para que nós dormíssemos bem.
- Vocês querem alguma coisa para comer?
- Obrigada, mas nesse horário nada desce.
- Nesse caso vou ter que devorar o miojo sozinha, trabalhei muito hoje e estou morta de fome. - Jurandir deu de ombros, seguiu para cozinha e voltou com uma tigela de miojo poucos segundos depois, ele sentou-se no sofá próximo ao nosso colchão.
- Posso te fazer uma pergunta?
- Claro.
- Aquele dia que a gente se conheceu você estava vestido de mulher...
Ele me interrompeu.
- Eu sou uma drag queen meu amor, quando nos conhecemos eu estava transformada, incorporada na Michelle.
- Ah, tipo a Pabllo Vittar! - exclamei animada.
- Isso!
- Que legal, sempre achei ela linda e muito talentosa, mas e você, também faz shows?
- Faço, mas hoje nem deu para me apresentar, chegou um ciente vip e embaçou tudo... - As últimas palavras ele pronunciou muito sem graça, o que ficou claro que foi sem querer.
Minha curiosidade não permitiu que eu desviasse do assunto.
- Cliente vip? Como assim, você faz um show exclusivo para ele?
Jurandir colocou a tigela vazia no chão ao lado do sofá, depois tirou um isqueiro e um maço do bolso da calça jeans e rapidamente acendeu um cigarro.
- Gata, eu vou ser direto com você, já que vai ficar no meu apê vai ser impossível esconder a minha vida, quem eu sou de verdade. - Ele deu uma pausa tragando lentamente a fumaça tóxica do cigarro antes de prosseguir. - Eu sou uma GP, garota de programa.
Engoli em seco, muda, sem saber o que falar para ele.
- Bom... Eu não tenho nada contra.
- Já fez alguma coisa parecida?
- Não. Nunca fiz nada desse tipo - respondi na defensiva.
- Então deixa pra lá...
- Deixa pra lá o quê?
- É que eles estavam procurando alguém com o seu perfil lá na casa. Mulata, com a bunda empinada.
Eu forcei um sorriso.
- É... Eu realmente estou numa situação precária, mas nunca me imaginei fazendo uma coisa dessas...
- Ah, para, né gata, o que tem de menina que nem você dando por aí de graça. - Ele inalou a fumaça enquanto me fitava com um certo sarcasmo.
- No meu caso nem de graça, eu nunca transei com ninguém... - falei baixinho, sentindo a vergonha esquentar minha cara.
- Mentira? Você é virgem?
- Sou... Eu quero perder minha virgindade com alguém que eu confio e ame muito, mas ainda não rolou.
Jurandir ergueu o corpo num impulso, se sentando no sofá e me encarando como se fosse me devorar naquele segundo.
- Você disse que está numa situação desesperada, não é?
- Sim, você viu.
- Sabia que quando eu comecei a fazer programa estava numa situação parecida com a sua? E olha só, hoje eu já consegui comprar esse apartamento, consigo manter minhas contas em dia e já estou juntando dinheiro para me mudar para um lugar ainda melhor. Tem valido a pena.
- Mas é que... Eu realmente não consigo me imaginar fazendo uma coisa dessas. Sem contar que eu não tenho experiência, não faço a menor ideia do que fazer com um pau, se é que você me entende.
Ele riu.
- Gata, você é virgem, isso vale muito no mercado, tipo, vale muito mesmo. Experiência é só um detalhe, você pode adquirir depois que perder esse cabaço.
A insegurança me tomou por completo. Não conseguia me ver num prostíbulo, me deitando com vários tipos de homens em numa única noite. Nada tinha acontecido e a sensação de asco, nojo de mim mesma já purgava como uma alergia pelo meu corpo apenas por me imaginar naquela situação. Eu definitivamente não havia nascido para isso. Tudo bem que eu realmente pensei em aceitar a proposta daquele tal de Kleber, mas as circunstâncias eram completamente diferentes... Não remetia a essa sujeira, a essa imundice que era vender o próprio corpo como se ele fosse uma mercadoria. Respirei fundo, me ajeitando sobre o colchão, me sentindo aliviada por Malu ter caído no sono novamente, ela era tão fofa que às vezes nem parecia de verdade, mas apesar da imagem agradável de vê-la dormindo coberta e confortavelmente, lembrei-me que a qualquer momento ela poderia estar no leito de um hospital, correndo sérios riscos de vida... Ela tinha a mesma doença que tirou a vida da nossa mãe, não dava para brincar com isso. Eu precisava levá-la naquele cardiologista que o pediatra me indicou o mais rápido possível, antes que fosse tarde demais.
Ser usada por um desconhecido devia ser horrível, por mais de um, pior ainda, mas antes ser usada por homens do que ver o corpo da minha irmã no caixão.
Por ela eu faria qualquer coisa, a qualquer custo.
- Posso tirar umas fotos suas para mandar para minha amiga? Ela é a dona da casa que trabalho.
- Pode sim - afirmei cabisbaixa, ficando de pé.
Jurandir me levou para um lugar mais iluminado, pediu para que eu fizesse poses sensuais, jogando o cabelo, fazendo carão provocante. Me esforcei ao máximo para que as imagens não ficasse forçadas e mecânicas, como o meu estado espiritual. Eu não estava muito contente com aquela ideia e, por mais que eu não tivesse escolhas, dentro de mim nada ainda era certo.
- Ficaram ótimas - ele disse com um certo encantamento. - Tenho certeza de que ela vai te amar, faz tempo que ela estava procurando uma mulher com o seu perfil, não tem nenhuma negra na casa e, isso vai ser ótimo para você, assim como é maravilhoso para mim ser a única trans de lá. Sempre tem uma fila a minha espera - Jurandir falou com orgulho, enquanto eu me tremia de medo e ansiedade. - Eu sabia! - ele deu um grito, mas logo se conteve quando viu Malu mexendo sobre o colchão. - Ela quer você lá amanhã sem falta! - grunhiu abafado, cheio de felicidade, como se fosse ganhar alguma coisa pelo que estava fazendo e, naquele momento eu senti que ele realmente estava ganhando mesmo.
- Amanhã... Mas já?
- Amanhã. Se prepara.
Jurandir cumprimentou-me com um boa noite antes de me dar as costas, explodindo de felicidade enquanto eu me derretia em angústia e me desmanchava em mágoas.
Eu não queria fazer aquilo, mas infelizmente a outra escolha não era uma possibilidade.