"Olha só isso".
Envio a foto com a minha mão enfaixada para o cara com quem estou conversando pela internet há muitos meses.
Ele não é qualquer cara. É um Sheik Árabe. Um príncipe bilionário que assistiu O Quebra Nozes quando eu fui a escolhida pela escola para ser a protagonista da peça.
Lembro que na ocasião o Sheik Rhayan Al Abdulla sequer olhou para mim. Mas depois me procurou no instagram e mantivemos contatos periódicos, desde então.
Dandara vai enlouquecer quando descobrir que eu também arranjei um Sheik. E um dia, espero que muito em breve, a minha mãe não terá mais de passar por tudo isso.
"Não posso permitir que qualquer homem faça isso com você, muito menos o seu pai. Venha para os Emirados agora!"
Meu coração se perde nos batimentos e meus dedos deixam o celular escorregar por entre meus dedos. Eu suspiro, igual uma menina idiota e apaixonada. Não gosto da ideia de ser salva, mas preciso sair daqui.
"Ele tentou matar a minha mãe outra vez, tive que me intrometer" é o que respondo.
"Não esperaria menos da minha mulher".
Sheik Rhayan sempre foi muito galante, atencioso e romântico.
Ele me manda flores, presentes, comida! Fazemos videochamadas sempre que dá, ele tem a vida muito agitada e sempre está nesses eventos milionários por aí.
Desfile de lingerie da Victória Secret's, Semana de Moda em Paris, visitando algum museu pelo mundo...
"Vou comprar sua passagem para vir ficar comigo essa noite".
"Sheik Rhayan... você sabe que não posso aceitar, preciso cuidar da minha mãe".
"Me envie os dados dela. Comprarei a sua passagem e a
dela".
Após refletir por um período e analisar todas as minhas
chances, fui sorrateiramente até a bolsa de mamãe e tirei uma foto de seu documento, enviei para o Sheik.
Minutos depois as passagens estavam compradas. "Últimas poltronas, infelizmente não tinha primeira classe". "Você comprou mesmo??? Ficou louco???".
"Louco seria deixar a minha mulher e sua mãe em perigo. O voo sai daí de madrugada. Te espero".
Andei em círculos pelo quarto, me achando maluca. De todas as loucuras que fiz na vida, essa, certamente, poderia estar no top 3, ao lado de: namorar um bandido na Rússia, ir sozinha para um país desconhecido com 10 anos de idade e conversar com um estranho pela internet.
"Você vem?"
Não tive forças para responder ao Sheik Rhayn, o que fiz foi jogar tudo de valor dentro das malas e correr para a edícula aos fundos, onde mamãe dormia para não sofrer qualquer abuso durante a madrugada.
- Oi, minha filha - ela acorda assustada, segura no colchão da cama.
- Mamãe?
- Hum? Já são 23h, Nessa, está tarde - boceja.
- Vamos embora!
- Nessa... - segura em meus ombros. - Já te falei, minha filha, não vamos envolver a dona Dalva nisso. Ela tem seus próprios problemas, a Janaína anda tão mal do coração...
- Não, mamãe, não pra casa da dona Dalva. - Meus olhos brilham. - Vamos para os Emirados!
- Emirados Árabes? - Ri. - Você bebeu, Vanessa?
- Visitar a Dandara, mamãe! - Minto para ela, para tentar convencê-la. - Você não quer?
Os olhos dela dizem que sim. O simples fato de ficar em silêncio e deixar a resposta pronta para a dúvida entrar, mostra que ela quer.
- Vamos passar uns dias com ela, depois voltamos. O papai vai estar com a cabeça no lugar, e...
- Filha - ela segura nas laterais do meu rosto. - Você é jovem, é bonita, é forte...
- Você também é. Olha só para esse rostinho, dona Melina, a senhora está na flor da idade. - Meus olhos lacrimejam porque já
sei a resposta.
- Vá. E se divirta por mim e por você. Eu vou ficar bem.
- Mamãe...
- Minha filha - segura em minha mão. - Eu estou vivendo a vida que eu escolhi e dela não posso sair. O que não é o seu caso. Você nunca devia ter voltado...
- Mas eu voltei, e...
- Você é talentosa, inteligente, não está presa à nada. O que a mamãe te ensinou desde quando você era pequena?
Nós duas choramos, em silêncio.
Porque apenas ela e eu sabemos o quanto foi difícil crescer nesse lugar e sobreviver a tudo o que passamos. Mesmo quando a vida pisou, tentou destruir e colocou minha mãe no chão, ela nunca perdeu a doçura, a graça e o brilho nos olhos de que o melhor estava por vir.
- Confie na vida - dizemos juntas.
Esse é o mantra dela. Esse é o meu mantra. Esse é o nosso
mantra.
Mamãe me ensinou que a vida só gera problemas que ela mesma pode resolver. E que se continuarmos a buscar a solução, o caminho, a resposta, uma hora encontraremos, basta...
Confiar na vida.
- Tenha uma boa viagem, meu amor. Não faça barulho quando sair. Vá e seja feliz! - ela me abraça com jeito de mãe, que aceita que o filho vá, mas não consegue soltá-lo.
- Eu volto. Pra te buscar - garanto.
Vou juntar dinheiro. Vou conseguir dar uma vida digna para ela. Vou tirá-la daqui.
- Eu volto por você, mamãe.
- Meu amor - ela solta minhas mãos, com um sorriso acalentador no olhar.
- Sim, mamãe?
- Confie na vida.
Vanessa Sá
Reencontros
"Curiosidade geralmente traz problemas."
- Lewis Carroll.
"Confie na Vida" é o que diz a tatuagem na lateral do meu pescoço.
Observo a fina caligrafia pela câmera do celular, assim como as minhas olheiras de choro pelas noites mal dormidas, hematomas nas minhas bochechas, no colo e pelos braços.
Ah, estou com a mão cortada também, gemo de dor quando pego a minha necessaire com meu kit de maquiagem.
É errado querer fugir? Porque a minha vida inteira foi sobre
isso.
Fugir da realidade, fugir da vida abusiva, fugir para um lugar
que eu pudesse me encontrar e ser feliz. Ser amada por quem eu sou e não precisar sofrer.
"Always" é o que diz a tatuagem do outro lado do pescoço.
Começo a preparar a pele para cobrir cada pedaço e deixar tudo uniforme, com aspecto saudável e descansado.
Afinal de contas, não é todo dia que você viaja 14 horas para encontrar seu Sheik Árabe Bilionário do outro lado do mundo, não é mesmo?
Bom, vamos lá, por onde eu começo?
Passo a água micelar por toda a pele e volto a ensaiar, em voz baixa, tudo o que eu vou dizer à Dandara Bernardes, minha melhor amiga, quando encontrá-la em Awmaj.
Ela ainda não sabe que estive por meses conversando com um estranho na internet e ela me consideraria verdadeiramente louca pelo que fiz. Mas eu confio na vida. Sempre. E preciso de um recomeço, então estou apostando as minhas fichas no Sheik Rhayan Al Abdulla.
- Por favor, me promete que não vai me julgar por tudo o que eu te disser? - Murmuro baixinho, para o meu próprio reflexo no celular, enquanto tiro as impurezas da pele.
O homem que viaja ao meu lado solta um ronco alto, faz um barulho com os lábios enquanto dorme.
- A verdade é que a minha vida nem sempre foi perfeita. Na verdade, ela sempre foi terrível, Dandara.
Respiro fundo. Preciso tomar um tempo para não chorar.
A ideia de fazer uma maquiagem é ficar bonita, não com cara de derrota.
- Quando eu passei naquele teste de Ballet para a Bolshoi com 10 anos, aquilo foi a minha salvação, sabe? - Engulo o choro, começo a passar o primer. - Meu pai sempre foi tão violento e abusivo... eu não sabia o que queria da vida, só sabia que não queria permanecer lá.
Palavras são apenas palavras.
Mas falar sobre coisas que estão guardadas no coração ou na memória é como costurar um pouco de si. Ao invés da agulha e linha, como minha mãe adora fazer, para expressar todos os seus sentimentos guardados, eu falo. Falo bastante.
E desde os 7 eu danço. Comecei na Academia de Ballet da Dona Dalva, avó da Dandara, lá em Recife.
- Não é que eu queria ir para a Rússia, mas eu não queria ficar em Recife, entende? Naquela casa barulhenta, cheia de culpa e raiva... Vendo a minha mãe apanhar, por ela e por mim, porque ela não deixava que meu pai me fizesse mal...
Respiro fundo. Sei que a minha melhor amiga também vai respirar.
Provavelmente vai me abraçar com força, segurar em minha mão e chorar junto comigo, porque é isso o que nós duas somos: duas manteigas derretidas.