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Folgo na segunda, mas nada de interessante acontece na segunda. Moro sozinha em um apartamento barato a dois quarteirões do meu trabalho e se não fosse Lisa ter me ajudado a encontrar essa pechincha, imagino que estaria morando de favor.
Não é tão difícil de se virar na pequena cidade de Howard, onde a população não passa de duas mil pessoas caipiras que te julgam se você tem sotaque estranho e costumes diferentes. Preciso admitir que admiro a senhora Stewart e seu falecido esposo Ben por terem tido a iniciativa do bar brasileiro em uma tradicional cidade dos Estados Unidos.
Surpreendentemente, eles gostam e os viajantes que passam pela rota setenta também.
Por ser uma cidade pequena com poucos habitantes, as oportunidades são mínimas, já que tudo aqui é por indicação, a famosa "peixada". Tive sorte da Lisa ter aparecido na minha vida, ela me apresentou os Stewart e eles me amaram.
Naquela época, já estava me virando sozinha, tinha passado pelo golpe e por uma barra na minha antiga escola preparatória, no Missouri. Mamãe já tinha voltado para o Brasil e a escolha de ficar nos Estados Unidos para ganhar em dólar foi minha. Embora ela não quisesse que ficasse sozinha, sabíamos que isso tinha que ser feito.
Meu pequeno apartamento é todo integrado, com tijolos à mostra e pintura pela metade. A iluminação é caótica e o piso de taco.
O prédio tem apenas cinco andares e conta com jovens solteiros e barulhentos que amam os finais de semana.
Aqui é assim, há apenas três prédios e nenhuma família quer morar porque são compactos.
Apenas pessoas solitárias se dão bem em ambientes pequenos e barulhentos.
Odeio meus vizinhos, eles estão sempre fazendo questão de mostrar que possuem uma vida sexual bem ativa.
A essa altura, como nunca foi escutado algo sugestivo do meu apartamento, fica explícito que tenho problemas de relação.
Mas eu gosto assim, pois se não me relaciono com ninguém, as chances de me magoar são mínimas.
Lisa me liga quando estou regando as plantinhas do parapeito da janela.
Atendo e coloco no viva-voz.
- Como foi ontem no trabalho? - pergunta logo de imediato.
Lisa é policial e sabe do meu problema com assédios, por isso todo domingo após o expediente ela me liga para saber como foi minha noite. Só que o turno dela mudou há duas semanas, então ela só tem tempo de me ligar no outro dia.
- Normal - digo vagamente.
Queria falar do brasileiro, mas aí estaria dando uma importância a mais para ele, sendo que poderia ter sido apenas uma coincidência.
Mas foi algo inédito, então mudo de ideia rapidamente.
- Tinha um brasileiro ontem lá, foi meio estranho.
- Estranho em um bom sentido ou no sentido ruim? Imagino a cara de desconfiada dela.
- Um pouco dos dois. Não tivemos o melhor diálogo, sabe?
Só foi estranho. Um parecia mais perdido que o outro.
Lisa dá uma risadinha do outro lado da linha.
- Caras bonitos deixam você sem jeito. Diz aí, ele era bonito?
Droga, era por isso que não queria tocar nesse assunto!
Nem estava mais pensando naquele sujeito, mas agora que Lisa tocou no assunto preciso ficar lembrando do rosto de galã da novela das nove, alto e com o corpo aparentemente bem cuidado. Isso sem falar do seu jeito, que parecia ter uma pequena dosagem de mistério e cavalheirismo.
- Era, sim.
- E o que falta para conhecê-lo melhor? - pergunta empolgada.
Lisa tem uma teoria de que quando encontrar um namorado, finalmente os assédios irão cessar.
Mas não vou me prender a uma pessoa por isso.
Gostaria que fosse algo natural e aqui em Howard é bem difícil para uma estrangeira como eu conseguir alguém.
- Ele só está de passagem - revelo.
- Ah, que pena. Já estava imaginando nossas saídas de casais aos sábados à noite.
Lisa tem um namorado, o Jeremy. Ele tem uma loja de construção e parece que está juntando dinheiro para pedi-la em
casamento e fazer uma festona.
- Você é tão emocionada, Lisa. Já disse que está na profissão errada - brinco.
Lisa é durona, os rapazes têm medo só de olhar para ela e gostaria de ser assim.
- E você está vivendo do modo errado, precisa transar para aliviar o estresse da vida. Não se preocupe, sua amiga aqui anda bem armada, qualquer coisa me chama e te salvo.
É o que ela sempre diz, por isso que a amo.
- Sabe como é, né? Cidade pequena, poucos habitantes, nada de interessante acontecendo.
Reviro os olhos em concordância.
Apesar de morarmos aqui, temos muita vontade de cair fora e ir para um lugar onde há mais oportunidades.
- Um dia algo incrível vai acontecer com a gente, sei disso.
Lisa não sabe que Jeremy anda se programando para pedi-la em casamento. Ele me contou porque queria ajuda para escolher o anel e queria saber como achava que ela reagiria.
Confesso que estamos ansiosos por esse dia.
- Mas para coisas incríveis acontecer, minha amiga, precisa deixá-las acontecer - comenta como um puxão de orelha.
Eu sei que ela tem razão, não posso viver com medo.
- Elas vão acontecer. - Fecho os olhos respirando fundo.
Gostaria de voltar a ser aquela garota sonhadora, sei que ela ainda habita algum lugar dentro de mim.
Quando fecho os olhos, vejo o piano e ouço as notas na minha cabeça quando mentalizo as notas musicais.
O que quase ninguém sabe sobre mim, é que antes de tudo dar errado na minha vida, tudo o que mais queria era ser uma pianista reconhecida, ou então apenas lecionar.
Mas acabei parando em um lugar onde o único piano que existe é na casa dos Johnson. E às vezes, quando tenho a sorte da Lisa me indicar para alguém, preciso pedir encarecidamente aos Johnson para usar o piano deles. Felizmente eles amam, pois, antes de mim, o instrumento era apenas um objeto empoeirado na sala de estar.
- Mas e você, como está? - pergunto mudando o foco da conversa.
- Estou dentro da viatura, tomando meu segundo copo de café - resmunga. - Esse turno está me matando, mas saio daqui duas horas.
- O Departamento de Polícia de San Diego entrou em contato com você?
Lisa bufa.
- Não, já estou perdendo até as esperanças - diz frustrada. Lisa odeia o fato do seu trabalho ter se tornado a coisa mais monótona do mundo. No início, mesmo com o menor das infrações,
ela até se empolgava, pelo menos é o que ela diz.
Mas depois do que aconteceu com a irmã dela e os anos foram passando, Lisa tem andado mais entediada do que nunca.
Jeremy a convenceu a pedir transferência para San Diego e ela fez porque sabia que não ia dar em nada. Porém, sei que, no fundo, era o que ela mais queria.
Quando isso acontecer, Jeremy se ajoelhará diante dela e a pedirá em casamento. Assim eles iniciarão uma nova vida em um lugar incrível.
O rádio dela recebe um bipe no meio da chamada, ela atende e fico esperando.
- Kira, o trabalho me chama.
- Tudo bem, vai lá. É uma excelente policial, San Diego terá muita sorte de ter você para protegê-los.
- Obrigada, amiga - diz com a voz manhosa e sinto uma dorzinha no coração.
Sou uma das pessoas que sabe da capacidade de Lisa, afinal de contas, ela me salvou do pior. E por isso, às vezes, tenho medo de perdê-la para San Diego.
Durante os dias da semana trabalho na recepção do motel da senhora Stewart. E quando tenho aulas de piano para dar, o que é raro, Stephan cobre meu turno.
Mas hoje, terça-feira, não tenho mais nada a fazer além de ficar atrás de um balcão recebendo pessoas vindo de todos os lugares.
O bom é que aqui passo despercebida.
Não era minha intenção, mas me surpreendi quando percebi que queria muito ver o brasileiro quando chegasse ao trabalho.
A senhora Stewart me disse que o Kia vermelho é dele, o que significa que ele deve estar no quarto ainda.
As horas passam e não há sinal dele, então começo a ficar ansiosa, com as expectativas altas em vê-lo de novo.
Em certo momento, dou uma volta para verificar se está tudo ok. Olho rapidamente para a janela do quarto vinte e dois, mas as persianas estão fechadas.
Talvez esteja com alguma mulher.
Volto para a recepção e passo o resto do dia ali. Apenas um casal se instalou no motel à tarde, fora isso passei a maior parte do tempo mexendo no celular.
Estava anoitecendo quando decidi ajustar algumas planilhas impressas sobre o balcão. A senhora Stewart é uma mulher antimodernidade, ela não sabe mexer nem no celular direito. Por isso preciso imprimir as planilhas diárias para ela ter conhecimento de quem saiu e quem entrou, o que foi gasto, entre outras informações.