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Ninguém deixa a noiva e some do dia para a noite.
Mas em minha defesa, não é como se ela não tivesse recebido os sinais.
Quando Beatriz morreu, fiquei deprimido e completamente perdido. Me distanciei porque não conseguia socializar e ela aproveitou a situação para fazer as coisas dela, mas em nenhum
momento se deu o trabalho de querer entender o que se passava comigo.
Foi quando percebi que ela não estava dando a mínima para mim e que não sentia mais a sua falta. Cheguei à conclusão de que meu tempo com minha noiva havia se esgotado e resolvi ir embora.
Para mim, Bruna havia ido embora primeiro do que eu, pois ela estava ali, mas, ao mesmo tempo, não estava.
Coloco a roupa de antes, jeans surrado e blusa de flanela.
Troquei minhas roupas boas por peças velhas de brechó.
Quando resolvi sair em expedição, me livrar durante esse tempo da imagem de um homem bem-sucedido foi a decisão certa a se tomar. Queria ser visto como um homem simples, mas que está solitário e que prefere que as coisas continuem assim.
É um bom disfarce para evitar pessoas, com algumas exceções às vezes.
Saio do quarto e despretensiosamente, caminho até o bar.
Quando passo pela recepção, dou uma rápida olhada e a senhora me vê, mas não parece surpresa. Ela apenas mostra um sorriso de satisfação por estar certa sobre minhas vontades, imagino.
Passo direito e continuo meu caminho.
Antes mesmo de chegar na porta do bar ouço a música abafada.
É som ao vivo, e por cima de tudo ainda é sertanejo. Não consigo segurar o riso, mas me contenho.
Isso é nostálgico e confortavelmente familiar.
Há quanto tempo não ouço uma música em português? As rádios daqui não tocam nada em português.
Já até tinha esquecido como é ouvir outra pessoa falar minha língua.
Assim que entro, sou atiçado pelo cheiro incontestável de bolinho de bacalhau. Inalo bem o aroma de olhos fechados e então expiro.
Isso é muito familiar.
Dou uma rápida analisada e percebo que o lugar é só mais um bar padrão da América.
Mas as bandeirolas do Brasil penduradas nas vigas e os quadros de grandes artistas brasileiros nas paredes dão o toque necessário ao ambiente.
Não está tão agitado, mas há pessoas o suficiente para não dizer de primeira que o lugar irá falir. Talvez tenha umas sete mesas
ocupadas, e bom, acho que isso já é muito para um bar brasileiro no meio do Kansas.
Como sou um forasteiro solitário, passo direto pelas mesas e alcanço o balcão. Sento no tamborete e espero ser atendido.
Me pergunto se os funcionários são brasileiros.
O português do cantor é excelente, talvez ele seja, mas duvido muito que o carinha do violão e da percussão também sejam.
- Olá, boa noite. O que vai pedir? - a mulher diz sem muito interesse do outro lado do balcão.
Olho para ela confuso, pois, seu inglês é bem duvidoso. Quer dizer, não que fique por aí julgando o inglês das pessoas, mas assim como a senhora do motel reconheceu meu sotaque, o desta mulher também consigo reconhecer.
Poderia dizer: "Falo português, pode ficar à vontade", mas prefiro dificultar as coisas.
Por que gostaria de mostrar a ela que sou brasileiro? Talvez ela perceba meu sotaque.
- Você quer o cardápio? - pergunta mais uma vez enquanto arqueia a sobrancelha.
Fico um pouco desconfortável por perceber que ela está me olhando de um jeito duro. Talvez tenha a encarado por tempo
demais, ao ponto de ter percebido que seus olhos são tão castanhos que quase se confundem a um preto profundo.
- Senhor? - enfatiza dando mais notoriedade ao seu sotaque.
- Uma cerveja - respondo em inglês. Ergo o dedo ao pensar melhor: - E uma porção de bolinhos de bacalhau.
Por um momento acho que ela vai revirar os olhos, mas a moça de cabelo escuro e cacheado apenas anota na comanda. Ela segura o lápis com tanta força que parece que ele vai se partir.
- Calma, Kira Almeida.
Ouço-a dizer e percebo que está falando para si mesma, resmungando baixinho em português.
- É só mais um babaca pronto para estragar sua noite. Fico tão sem reação que pisco atordoado.
Assim que termina de anotar, ela me olha, mas paralisa quando percebe que estou olhando para ela com surpresa.
Ficamos olhando um para o outro, enquanto assisto seu brilho sumindo conforme vai se dando conta da situação.
É tão constrangedor que esboço um sorriso de lado para ela e apoio os antebraços no balcão de madeira polida, inclinando o torso um pouco mais para frente.
- Se fosse você teria cuidado com essa boquinha. Um dia alguém vai entender e pode acabar se dando muito mal - digo as palavras em português, deixando-a sem reação.
Vejo, lentamente tudo nela perder a cor. Até mesmo as palavras parecem fugir.
Não gosto de constranger as pessoas, mas, nesse caso, fui insultado gratuitamente.
Não fiz nada que pudesse ser compreensível sua ira.
A garganta da mulher oscila quando engole seco, pisca e então tenta retomar a postura dura que tinha segundos atrás, mas sem sucesso.
- Você tem sorte que não sou esse babaca que pensa. Ela pigarreia.
- Perdão, senhor. Não fazia ideia que falava português também - diz usando um tom de voz mais flexível, doce.
- Ah, então você costuma insultar os clientes que não falam sua língua? Isso é se aproveitar da situação, eu diria.
Deixo a mulher nervosa, ao ponto que bate seus punhos na quina do balcão.
- Não, eu... - começa a falar exaltada, mas logo fecha os olhos e respira bem fundo, para então me olhar de volta e com uma
voz mais serena. - Escute, vamos esquecer isso, tá legal? Vou pegar sua cerveja e deixar a sua comanda na cozinha.
- Não está tendo uma noite boa, não é?
A mulher me olha incrédula, mas acho que está me estudando.
- Isso importa para você? - Se vira e me deixa sozinho. Sorrio.
Que merda!
Não me importo, mesmo e ainda assim, quis saber, não sei dizer se é a música, o ambiente ou ela, por ser uma brasileira muito bonita que me chamou de babaca na primeira oportunidade.
Fico batucando os dedos na superfície lisa e amadeirada até ela voltar com a cerveja em uma tulipa.
Mas não é para a cerveja que fico olhando.
- Só estava tentando ser legal - digo, e nem sei o motivo.
A mulher me olha sem muita expressão facial.
- Eu já disse, vamos esquecer.
- Que tal recomeçar isso?
Ela me olha de um jeito estranho que quem acaba se sentindo constrangido sou eu.
- Recomeçar isso? Isso o quê? - Deixa a cerveja sobre o balcão bem a minha frente, e se empertiga para sussurrar: - Não dá para recomeçar o que não começou. Com licença.
Ela se retira mais uma vez em passos firmes, se fazendo de desentendida, me deixando igual um cachorro abanando o rabo.
Não sei, mas achei que estar em um bar brasileiro, tomando uma cerveja enquanto escuto um sertanejo ao vivo faria com que me sentisse em casa e voltar a socializar de um jeito mais normal. Dei brecha para tirar aquele desconforto de minutos atrás no quarto do motel e agora parece não ter sido uma boa ideia.
Ao menos a cerveja é bem gelada.
Oliver, Domenico e Nicolo iriam gostar muito daqui.
KIRA
Fazia tempo que não aparecia um brasileiro aqui no bar. Nenhum além de mim, claro.
Deveria ter reparado no sotaque dele, mas a música estava alta demais, falei uma coisa imprudente e agora corro o risco dele ir até à senhora Stewart e me dedurar.
O trabalho no bar não é o meu trabalho fixo, às vezes cubro as folgas do meu amigo Stephan, e ainda ganho um trocado.
É algo bom, ganhar uma gorjeta é sempre algo bom, por isso, fico aflita nas horas que se seguem.
Mas às vezes é preciso engolir alguns abusos com farinha
seca.
Não estou querendo insinuar que o brasileiro, moreno,
barbado e de belos olhos azuis tenha feito algo ruim, só fico cansada dos olhares que eles me direcionam. Se fosse algo singelo, até ficaria lisonjeada, mas não.