Capítulo 4 Capitulo 4

É sempre um olhar predador que me arrepia até os ossos.

Só que preciso confessar, talvez tenha me precipitado sobre o sujeito brasileiro. No final das contas, ele só queria beber e comer bolinhos de bacalhau.

Me pergunto há quanto tempo não volta para o Brasil, pois pareceu fascinado com o bolinho.

Às vezes me pego assim quando decido fazer brigadeiro, mas os ingredientes daqui não são os mesmos que encontramos no Brasil, então o sabor muda um pouco.

Lá pelas dez da noite, resolvo limpar algumas mesas. Amanhã é segunda, todo mundo acorda cedo para ir trabalhar,

então os clientes saem mais cedo do estabelecimento.

Mas não foi o caso do brasileiro que ainda não sei o nome.

Ele continuou solitário, bebendo sua cerveja enquanto ouvia quieto a banda tocar sertanejo e foi o último a sair.

Às vezes, pelo rabo do olho, o flagrava me observando.

Esses homens só podem estar loucos, o que veem em mim? Quer dizer, sei que alguns deles nem ligam para aparência,

basta ter uma vagina no meio das pernas.

Isso é motivo o suficiente para eles nos tirarem a paciência com sua inconveniência rotineira.

Mas, todo domingo, passo por um tipo de assédio no bar.

E, não, os caras nem estão em suma perto de estarem bêbados.

Isso é o mais engraçado!

Eu não me considero uma pessoa bonita, embora meu amigo Stephan diga sempre o contrário.

Não sei mesmo reagir a elogios.

Quando aquele brasileiro me olhou daquele jeito, soube que estava ligado a minha aparência e fico logo insegura.

Será que meu cabelo está bagunçado? Será que meu rosto está sujo?

mim?

Será que ele me achou um patinho feio e está com pena de

Argh!

Não estou sendo dramática, é apenas uma enorme bagagem

que carrego comigo desde o ensino médio. Faz um tempinho, mas a coisa toda foi tão horrível que nem mesmo mudando de país resolve minha situação.

Não gosto nem de lembrar.

Quando o turno acaba, preciso ajudar nos últimos retoques com o pessoal da cozinha.

Mitchell, a garota responsável pelos bolinhos de bacalhau, vem falar comigo quando estamos retirando o lixo.

- O brasileiro quase acaba com nosso estoque de bolinhos de bacalhau.

Olho para ela incrédula, pois, não sabia que a presença dele havia se alastrado até a cozinha.

- Deve sentir saudade de casa, assim como você sente toda vez que faz brigadeiro e traz para nós - ressalta a loira baixinha sardenta.

- Não sei, ele parecia desconfortável. Às vezes, sentir falta de casa não é uma coisa boa, principalmente quando quer deixar

para trás coisas que faziam mal.

- Bom, mas se sente falta, é porque algo ficou inacabado, não acha? Você sente falta do Brasil? Pensa em voltar?

Penso um pouco sobre a resposta. Nem sempre me perguntam isso, na verdade, nem eu me pergunto.

- Precisaria de um encorajamento maior. Mitchell faz então uma cara maliciosa.

- Se todos os homens no Brasil forem gatos como o que veio aqui hoje, é encorajamento o suficiente para voltar, querida.

Começamos a rir e então voltamos para o serviço.

Quando pegamos o ritmo da coisa, tudo flui rapidamente e em quinze minutos deixamos a cozinha um brinco.

Osalão do bar está vazio e não há mais som animando o

local.

Fico de fechar a porta da entrada e entregar as chaves para a

senhora Stewart. Basta atravessar a rua e deixar o molho de chaves na recepção do motel com ela.

Me despeço dos meus colegas de trabalho que vão à frente e me distraio jogando o molho de chaves no ar e pegando de volta.

Mas a deixo cair no chão assim que vejo o brasileiro sentado no meio-fio da calçada. Ele parece estar esperando alguém, e do

jeito que me olha parece até que espera por mim.

- Não vai pegar? - pergunta apontando para o molho de chaves caído no chão.

Rapidamente pego as chaves e volto a olhar para ele que ainda segura uma garrafa de cerveja vazia.

Não parece estar bêbado, mas também sei que não devo confiar neste detalhe.

- Vai me dedurar para a senhora Stewart? - pergunto debilmente, pois sei que não deveria dar brechas.

Lisa, minha melhor amiga que é uma policial incrível, me aconselhou o que fazer e não fazer para manter homens porcos bem longe de mim. Porém, esse homem tem um olhar que me fisga e não digo de forma amorosa ou sexual, mas algo mais íntimo, pessoal e energético.

- Senhora Stewart? - pergunta pensativo enquanto se levanta com um pouco de dificuldade. - Ah, deve ser a senhora da recepção. Ela também é dona do bar, não é? Mas por que deduraria você?

Meus ombros relaxam e dou uma risada sardônica.

- Ter te chamado de babaca parece tê-lo deixado bastante chateado.

- Teria se sentido ofendida se fosse o contrário.

- Sim, mas...

- Você teria esquecido isso - parafraseia minha frase de mais cedo.

- Iria dizer que não sou de ficar indo em bar. Então seria uma probabilidade bem difícil de acontecer.

Ele olha para o estabelecimento atrás de mim.

- Não gosta de bar, mas trabalha em um.

Começo a balançar a cabeça, estreitando o olhar em sua direção. Me surpreende que esteja tentando manter uma conversa. Se for mais um como os outros vermes, talvez este seja um verme com cérebro, ou um pouco dele.

- O que quer, afinal?

Ele fica sério, larga a garrafa de cerveja na sarjeta e dá dois passos.

Deixo os pés firmes, caso precise correr.

Que droga, não é legal ser insegura com os homens, mas o tanto de coisa que já passei e presenciei, infelizmente me torna esta pessoa amedrontada.

- Pedir desculpas - diz por fim. - Acho que a chateou a forma como a olhei, mas só estava surpreso em ver uma

conterrânea.

Sorrio ao ouvir a palavra "conterrânea", isso é tão da nossa cultura.

Passo a língua nos lábios para umedecê-los. Estamos no final do inverno, então o clima está frio e a pele, cabelo e lábios ficam ressecados bem rápidos.

- É compreensível, desculpas aceita - digo e relaxo os braços em volta do corpo. - Trabalho aqui aos domingos, mas é o suficiente para estar saturada com os assédios que presencio. Eu só estava tentando me defender.

- É compreensível.

Vejo sua garganta oscilar, como se ele estivesse engolindo palavras que gostaria de dizer, mas que deve ter pensado melhor antes de proferi-las.

- Está hospedado no motel da senhorita Stewart? - pergunto enquanto ando em direção à rua para atravessá-la.

O brasileiro me acompanha em passos lentos.

- Sim, cheguei hoje - respondeu enfiando as mãos nos bolsos da calça surrada.

- E o que o trouxe para o Kansas?

Seu silêncio me faz perceber que minha pergunta foi inconveniente demais e quando me dou conta disso, fico extremamente envergonhada.

- Desculpa, é que não esperava que a ideia de encontrar um conterrâneo fosse tão empolgante.

Quando alcançamos a outra calçada, ele diz:

- Não vou ficar por muito tempo. Então nada em específico me trouxe para o Kansas, estou apenas de passagem.

- Ah, entendo.

Gostaria de dizer que deve ser incrível atravessar o país de carro, completamente despreocupado. Não sei se ele é um viajante, mas chego à essa conclusão porque um cara sozinho como ele não teria como passar pelo Kansas, se não estivesse atravessando o país. Mas quando se está com um amigo, é mais provável que o destino seja Las Vegas.

- Bom, então faça uma ótima viagem, seja lá para onde estiver indo - digo antes que continue seu caminho pelo corredor.

O brasileiro apenas para e fica me olhando, como se estivesse esperando algo a mais. Isso é uma droga porque acabo percebendo a boca rosinha e bem delineada escondida pela barba máscula.

Olho para ele de forma sugestiva, o instigando a dizer ou fazer qualquer coisa. Normalmente, iria querer ficar sozinha o mais rápido possível, mas esse cara parece esconder o jogo e isso me intriga.

Um brasileiro misterioso no Kansas, era tudo o que precisava para minha vida monótona.

- Obrigado - diz fazendo um rápido aceno. - Tenha uma boa noite.

- Você também - digo forçando um sorriso. E isso é tudo.

Quando ele se vira, me dou conta de que não perguntamos o nome um do outro.

Mas talvez não faça diferença.

Não busco mais laços do que já tenho e ele não deve ser muito diferente de mim, por isso entendo seu espaço pessoal.

Mas não sei, gostaria de conhecê-lo melhor. Além do mais, não falo com mais ninguém além da minha mãe em português.

Talvez Mitchell tenha razão, sinto falta de casa.

O problema é que não há mais nada a ser resolvido, minha vida toda foi moldada nos Estados Unidos. Passei por muita coisa

aqui e isso me faz pensar que deveria voltar, nem que fosse para tirar umas férias.

            
            

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