Collin era bancário, desses de meia idade que usam a camisa social larga por dentro da calça apertada com um cinto, tinha grana mas também muitos gastos e preocupações em excesso. Talvez daí sua calvície precoce.
Desci do carro me sentindo aliviada, Collin era tão desajeitado quanto gentil, seu óculos de aro fino escorregou até a ponta do nariz enquanto suas mãos se ocupavam com minhas malas.
- Precisa de ajuda? - ofereci, embora a bagagem fosse minha.
- Só abra a porta, por favor.
Se eu soubesse o que aconteceria ali dentro, teria aproveitado cada passo no caminho de pedra até os degraus da frente como uma marcha nupcial, agora eu mal me lembro, virei a maçaneta mas a porta não abriu.
- Ah, eu me esqueci. Está trancada - ele soltou as malas no chão, a nécessaire rolou até a cerca branca, Collin tropeçou ao tentar impedir.
- Eu pego. Porque não abre a porta enquanto isso?
Apanhei a nécessaire e algo me chamou a atenção. A cerca era lisa e bem lixada, mas havia algo bem abaixo da última curva, uma letra P entalhada, muito pequena que só seria possivel ver chegando bem perto ou se soubesse que estava ali. Isso me lembrou da minha infância, quando as coisas ainda eram boas.l e eu podia aprontar como uma criança normal.
- Srta. Davis? - olhei para Collin por cima do ombro - você vem?
O lado de dentro era bem diferente do que eu imaginava, as grandes janelas cobertas por grossas cortinas não deixava muita luz entrar, apesar de escura, a casa era bem cuidada e aconchegante, da porta eu podia ver um longo corredor que dava para o banheiro, à direita estava a escada e pouco antes dela uma passagem circular, por onde Collin me guiou. Passei por cima das malas deixadas na entrada e o acompanhei.
- Sala de visitas, não é muito usada pelo que pode ver, os sofás estão quase novos mas a lareira vai ser útil no inverno, pode usar se ainda estiver aqui. Atrás daquela porta tem um escritório - ele apontou para a frente da casa - vai encontrar as contas lá, receitas antigas e esse tipo de coisa, também tem um computador com internet. Está na faculdade, não é?
- Curso técnico, na verdade.
- Pode estudar ali se quiser- e seguindo para o outro lado - aqui é uma sala de qualquer tipo, não achei utilidade para ela, mas trouxe um equipamento de ginástica.
- E o piano?
- Não sei se funciona, tentei dar fim mas é grande demais para passar pela porta.
- Se ele entrou, tem um jeito de sair. Mas é melhor assim, quem sabe não arrisco algumas notas?!
Collin olhava para o instrumento com as mãos na cintura, como se aquele fosse um quebra cabeças bem difícil de montar.
- A maioria dos móveis veio com a casa - deu de ombros, por fim - essa é a última sala desse lado, sala de tv - ele entrou no próximo cômodo, e apontou para uma outra porta - aqui dá para o banheiro e tem outra saída no corredor, é o jeito mais fácil de passar para o outro lado.
Ele abriu e mesmo achando aquilo estranho eu o segui, os cômodos pareciam todos interligados como o corpo humano, embora suas funcionalidades fossem questionáveis, quer dizer, quem coloca duas portas em um banheiro de visitas? Quem não precisa de privacidade, eu imagino.
Passamos por outra abertura em arco do outro lado do corredor, a sala de jantar era grande, diferente das outras, muitas cadeiras em torno de uma mesa comprida e um lustre imenso acima. No final uma porta balcão que dava para a cozinha e a saída dessa de volta ao hall.
- E é isso no térreo, mas acho que vai ficar mais tempo lá em cima - Collin subiu alguns degraus e precisou parar para descansar.
- O senhor está bem?
- Não sei como vocês conseguem fazer isso - ele suspirou pesadamente, sua gentileza alegre dando lugar a algo mais sombrio - não me entenda mal, Srta. Davis, mas cuidar da minha mãe tem me deixado doente também.
- Está com ela há quanto tempo?
- Uns cinco meses desde que a última cuidadora se demitiu. Foi difícil encontrar alguém para tempo integral.
Eu sabia que o horário não era o problema, para tal, a maioria das cuidadoras cobraria três vezes o que o Sr. Miller estava disposto a pagar. E era por isso que ele me contratou, sem experiência comprovada, sem estudo e de outro estado. Se alguém arrisca colocar uma pessoa sem nenhuma referência para cuidar da vida da própria mãe em uma casa cheia de analgésicos é por que está sem opções e por sorte eu também não tinha muitas.
A escada dava para uma janela que quase ocupava a parede toda e no pequeno espaço acima do banheiro no andar debaixo, havia uma mesa pequena com um telefone vermelho mas nenhuma cadeira, os dois lados da escada traziam um corrimão da mesma madeira escura do piso e se fechavam em um quadrado perfeito, o corredor largo tinha suas paredes cobertas por papel de parede florido em tons de azul e mostravam duas portas de cada lado.
- Todos os quartos estão mobiliados mas acredito que ficará mais à vontade neste - Collin abriu uma porta à direita.
O quarto era grande, pegava a cozinha e a varanda.
- Está ótimo, Sr. Miller.
- Bem, tem um envelope com uma quantia para emergências na mesa do telefone mas você pode me ligar se precisar de algo - ele olhou para os quatro cantos do chão enquanto batia nos bolsos - certo, acho que é isso, então. Alguma dúvida?
- Acho que devia me apresentar a Margareth.
- Ah, sim - ele pareceu envergonhado e fez sinal para que eu o seguisse até a porta em frente a minha - mãe?
Ele abriu devagar e entrou.
Parei na porta, aquele quarto era muito familiar, tirando a mobília antiga e o papel de parede escuro. Os cilindros de oxigênio tinham o mesmo tom de verde, assim como os aparelhos brancos com o som de bipe que eu já conhecia.
- Ela não interage muito - Collin parecia perdido ao lado da própria mãe.
- Oi, Margareth. Eu sou a Olívia - me aproximei da cama, cada passo mais difícil que o outro. A mulher olhava o céu peloo vidro mas não acho que tivesse ciência do azul claro ou das nuvens brancas.
- Os médicos não deram um tempo exato mas só vai piorar, até...
- Eu entendo.
- Preciso ir agora, acho que não esqueci nada.
Collin estava muito incomodado, principalmente depois de ver a mãe, era como se quisesse fugir dali e nunca mais voltar. Eu o entendia, teria feito o mesmo. Infelizmente eu não tive essa opção.
- Eu sei o que fazer a partir daqui, Sr. Miller. Não se preocupe.
Ele assentiu e o acompanhei até a porta, não era difícil perceber o que ele sentia, culpa, medo, arrependimento, exaustão. Mesmo que ele ficasse, esse sentimento não iria embora, não importa o quanto ele fizesse, nunca seria igual ao que a mãe fez ao lhe dar a vida.
As chaves ainda estavam penduradas na fechadura então tranquei. Esperei por vários minutos até que Collin tomasse coragem para ligar o carro e voltei para o andar de cima, dessa vez levando as malas comigo.
As deixei no corredor, pegando apenas as folhas que Collin havia mandado por email sobre os cuidados com Margareth, junto com o contato de sua antiga cuidadora, ainda faltavam algumas horas para encerrar o dia então entrei no quarto da idosa para verificar seus sinais.
Margareth era uma senhora de oitenta anos, com a saúde muito debilitada embora não fosse possível fazer um diagnóstico preciso, os órgãos dela estavam falhando pela idade. Ela fazia drenagem linfática todos os dias e usava fraldas, seu corpo vivia apoiado por travesseiros para evitar atrito e mesmo assim haviam feridas causadas pela inércia.
- Tudo em ordem por aqui - constatei ao verificar os aparelhos - só vou trocar esse travesseiro, está bem?
Arrastei o travesseiro entre seus joelhos e ela abriu levemente as pernas. Voltei meus olhos para as folhas sobre a cômoda onde dizia 'invalidez'.
- Certo, acho que invalidez não quer dizer paralisia. Desculpe, ainda estou aprendendo os termos médicos. Vou ter mais cuidado com suas pernas na próxima vez.
Margareth não demonstrou sinal algum de consciência.
Eu só não entendia porque ela ficava na cama o dia todo se tinha alguma locomoção. Apliquei analgésico pela sonda e Margareth fechou os olhos cerca de dois minutos depois. Coloquei a máscara de oxigênio que ficaria com ela a noite toda, apaguei a luz e saí.
Desci as escadas, era estranho andar por uma casa tão antiga com piso de madeira sem que nenhum deles rangesse, na cozinha pude perceber o que estava ali com a casa e o que tinha sido posto pelo Sr. Miller.
Tirei um macarrão com queijo do congelador mas ao abrir o micro-ondas vi que estava imundo, impossível de usar, dei preferência para o forno antigo. Liguei em 230º e fechei. Me preparava para dar uma olhada no escritório quando ouvi meu celular tocar.
Corri para o andar de cima antes que o som de Pretend We're Dead do L7 acordasse Margareth e atendi sem nem olhar quem ligava.
- Alô!
- Oi, linda.
- Betsy? Oi.
- Como foi o primeiro dia?
- Bom, Collin só me pegou na estação às duas da tarde, então fiquei pouco tempo aqui, Margareth é quase um vegetal então acho que vai ser meio parado.
- Está chamando seu patrão pelo primeiro nome? Me diz, ele é bonito?
- Não e eu tenho namorado. Mas ele é legal, meio confuso mas legal.
Peguei as malas e as carreguei para o quarto enquanto falava.
- Você tinha um namorado. Mudou de estado, é a hora certa de dar um pé na bunda dele.
- É, mas ele está desempregado agora então vai tentar algo por aqui também.
Betsy nunca gostou muito de Justin e era recíproco, por essa razão minha amizade com ela acabou sendo deixada em segundo plano, inclusive tínhamos um esquema para ela me ligar. Eu não salvava seu número e se atendesse o telefone com um 'pode falar' era porque Justin estava perto então ela dizia que era engano e desligava. Isso não era um grande problema para nós duas e ter um pequeno segredo me ajudava a manter a ideia de que eu era um ser pensante independente dele.
- Justin está sempre desempregado. Olha, você quem sabe da sua vida, mas o Texas era pra ser seu recomeço não pode levar sua vida antiga com você, Liv.
- Eu sei, mas não posso simplesmente terminar quando ele mais precisa de mim.
Abri a mala e comecei a esvaziá-la sobre a cama.
- E quando você precisou?
- Eu tenho que desligar.
- Não, espera. Não vou tocar nesse assunto, me desculpe.
- Tudo bem, é só que essas não são assim tão simples.
- E como é morar em uma casa de rico?
- Não é uma casa de rico - ri, esquecendo totalmente a discussão anterior - é aconchegante, tem muitos cômodos mas pequenos.
- Se você fizer um bom trabalho, quem sabe eles não deixam a casa como herança para você.
- Você vê filmes demais.
- Pode acontecer.
- E eu não ia querer essa casa, é antiquada e o papel de parede é horrível.
- Pode derrubar e fazer um lava rápido. Quem sabe assim o Justin não trabalha um pouco.
- Betsy?
Ela era assim, se desculpava e minutos depois fazia de novo. Por sorte nossa conversa foi interrompida por um som alto e estridente do telefone fixo tocando.
Ah, Deus. Só de lembrar que foi assim que começou sinto toda minha pele arrepiar.