Devon
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Capítulo 4 Olívia

A primeira noite não foi fácil como eu já esperava, os pesadelos terríveis me acordaram a cada hora e a casa parecia um forno de tão quente. Margareth acordou cedo, preparei sua refeição como instruído, tudo bem batido no mixer.

- Está com fome? - iniciei minha conversa unilateral - o café hoje é banana e mel. Você vai gostar.

Levei a colher a boca dela e precisei forçar sua gengiva para baixo até que abrisse, Margareth teve dificuldade para engolir, o que fez a hora do café levar três vezes o tempo que planejei. Administrei a medicação da manhã e troquei a fralda antes de iniciar a hemodiálise.

- Já deve estar cansada, não é? - perguntei ao perceber seus olhos pesados. Fui até a janela e olhei mais uma vez o lado de fora, a casa da frente ficava depois de uma rua larga e um quintal grande, observei com atenção - acho que copiaram sua varanda, não os culpo. É bem charmosa.

Margareth já dormia, o que fez eu me sentir sozinha. Andei pela casa, pegando um ou outro objeto mais curioso antes de devolve-los ao lugar, passei os dedos pelo piano tentando me lembrar como tocar. Tive a impressão de que a primeira nota saiu alta demais e parei, por medo de interromper o sono de Margareth.

Mal aguentei passar a manhã, sozinha e em silêncio. Andei mais pela casa do em uma trilha, ansiosa para que algo acontecesse. Até mesmo outro telefonema assustador como o da noite anterior parecia uma boa ideia.

Tentei não pensar em Justin para não ficar mais ansiosa.

Estava respondendo uma mensagem de Colin, garantindo que tudo estava bem quando Margareth acordou. Subi até o quarto e abri a cortina outra vez.

- Bom dia, de novo - mantive a voz alegre, mas baixa, puxei a cadeira da penteadeira para perto da cama e me sentei - sei que não nos conhecemos bem, mas quero tentar algo novo com você. Se ficar agitada eu paro, está bem?

Esperei alguns segundos, como se um milagre fosse acontecer. Tirei o cobertor de cima de suas pernas, a mão dela tremeu de leve com a mudança.

- Tudo bem, vou tocar em você agora.

Segurei o tornozelo e massageei de leve, então inclinei o pé para baixo, como de uma bailarina, segurei assim por alguns segundos e o virei para cima a fim de alongar. Levei alguns minutos assim antes de partir para o outro pé.

- Ainda tem elasticidade, isso é bom. Logo vai conseguir ficar em pé, talvez até dar alguns passos.

Eu não tenho qualquer formação em fisioterapia, embora tenha exercido essa função nos últimos anos, seguindo instruções de um profissional, para não atrofiar os membros da minha mãe enquanto ela estava acamada. Um exercício muito parecido com o que fiz com a Margareth. Seu tornozelo começou a ficar rígido, eu precisava de um pouco mais de força apenas, mas entendi que aquele era o limite.

- Continuamos amanhã - coloquei a coberta sobre ela mais uma vez - O que quer fazer agora?

Seus olhos estavam parados na janela, seu rosto inexpressivo me sufocava e me atraía na mesma medida, seu sofrimento me lembrava do mesmo que mamãe sofreu meses antes, não podia desviar o olhar, engoli a bile que subiu a minha garganta e respirei fundo. Um livro caiu da prateleira abarrotada atraindo minha atenção. Me assustei. Depois me lembrei de uma coisa que ouvi no hospital, uma lenda indiana ou algo assim, que dizia que pessoas com demência tinham sua mente aprisionadas no canto escuro da cabeça e que podiam se comunicar de outras formas. Não me lembro bem, mas gostava de pensar que minha mãe fazia ventar quando queria dizer 'Tudo bem, Liv. Eu te perdoo.' E que Margareth foi quem derrubou o livro como um pedido.

- Quer que eu leia para você?

Me levantei e peguei o livro do chão a capa era verde ou azul, dependendo de quem olha, com borboletas amarelas, olhei para cima e os outros livros nem se quer tinham tombado.

"Péssimo senso de humor, destino", pensei.

Não li Para Sempre, Alice. Na verdade, desisti de ver o filme nos primeiros quinze minutos, mas sabia sobre o que falava, uma mulher feliz e ativa que é diagnosticada com Alzheimer. Não era bem a leitura que queria para mim ou para Margareth, mesmo que a sua demência não tenha sido propriamente apontada por um neurologista, e como se o livro estivesse contaminado pela própria doença, levei para fora do quarto e o coloquei sobre a mesa do telefone no corredor.

Desci para preparar o almoço de Margareth e o servi, troquei sua fralda e ministrei a medicação.

Justin ainda era evitado nos meus pensamentos, mesmo que eu olhasse de hora em hora para a tela do celular, imaginando quando ele chegaria.

Seguiu uma tarde tediosa. O problema do tédio é que nunca nos permite fazer boas escolhas. Me levantei e peguei o livro novamente, me sentei na janela e abri. Meu coração apertou enquanto lia, mais e mais a cada frase, página, capítulo. Não conseguia parar de ler mesmo sofrendo com isso, sentia meus olhos doerem, pesados. Claro que não percebi quanto tempo tinha passado até o telefone tocar. Saltei com o susto e peguei o telefone o mais rápido que consegui.

- Alô?

- A-alô - a mesma voz do dia anterior.

- Quem está falando?

- Devon.

- Tá, e você quer falar com quem?

Havia escurecido e a única luz vinha da janela atrás de mim, à minha frente apenas o corredor longo, escuro e ameaçador, assim como a voz do outro lado da linha. Forte e rude, parecia até mesmo enferrujada, na ocasião pensei que a voz não era usada com muita frequência. Eu ficava mais assustada a cada segundo.

- Com você, eu acho.

- Eu estou trabalhando, pare de ligar, por favor.

- Espera. Eu estava pensando se você pode me indicar o livro que está lendo.

Desliguei e corri para o quarto de Margareth, peguei meu celular que estava na poltrona e liguei para Justin, tocou algumas vezes e caiu na caixa postal. Aí disquei o 911, mas pareceu ridículo.

Sim, Devon me assustou de verdade.

Enfim, me ocupei com a rotina da noite de Margareth, trocar fralda, banho de leito, medicação. Não que eu tenha relaxado, mas se eu fosse morta por um serial killer, não queria que achassem que eu não fazia meu trabalho. Quando a idosa dormiu liguei para Justin de novo. Ele desligou e enviou uma mensagem: 'estou aqui.'

Respirei aliviada e desci as escadas correndo, abri a porta de uma vez. O que pensando bem, foi algo muito estúpido, e me joguei nos braços dele.

- Hei, isso é saudade? - Justin passou um braço em torno da minha cintura, o abracei mais forte até sua voz ficar esganiçada - sério, o que aconteceu?

- Hei, isso é saudade? - Justin passou um braço em torno da minha cintura, o abracei mais forte até sua voz ficar esganiçada - sério, o que aconteceu?

- Entra - o soltei e voltei para dentro, quando ele entrou passei a chave e o trinco.

- Não está neurótica de novo, não é?

- Tem alguém me vigiando.

Justin balançou a cabeça e deu um passo para trás, parecia cansado e entediado.

- Quem ia vigiar você?

- É verdade, acho que é um vizinho - meus olhos se encheram d'água e me odiei por isso.

Claro que Justin ia desconfiar de mim, nos últimos dias que fiquei na minha antiga casa, eu mal sabia o que era real e o que não era.

- Está bem - ele veio até mim e me virou, empurrando levemente para a cozinha - porque não me serve alguma coisa e me conta o que está havendo?

Ele se sentou, fechei a cortina totalmente e enfiei uma lasanha no forno.

- Ontem à noite alguém me ligou, eu estava no celular com - fiz uma pausa repentina e engoli em seco, quase disse o nome da Betsy - com Colin, o filho da paciente - ele se inclinou para trás e me olhou fixamente, com certeza não acreditou no que eu disse - para dizer como foi a rotina da noite, eu tenho que passar tudo para ele.

- Vai logo ao ponto, Olívia.

- Então, eu tinha colocado algo no forno e esqueci, então alguém ligou e disse apenas 'forno'. Foi assustador.

- É assustador que um vizinho avise sobre o cheiro de queimado?

- As casas não são próximas, como um vizinho sentiria?

- Alguém passeando com o cachorro ou fazendo caminhada.

- E ao invés de bater, foi para casa e ligou?

- Pode ter ligado do celular.

- Não tinha barulho de rua, estava quieto.

Justin suspirou e balançou a cabeça outra vez.

- Foi assim que começou da última vez. Sabe, Olívia, eu estou te dando mais chances do que você merece, mas se começar de novo com aquela merda, eu vou embora e nunca mais volto.

- Não é só isso, ele ligou hoje de novo, sabia que eu estava lendo. Não entendo como pode ter visto porque eu estava no segundo andar.

- Com certeza não é nada, não se preocupe com isso - Justin afastou a cadeira e abriu mais as pernas - foi uma viagem cansativa, porque não me ajuda a relaxar.

- Não sei, estou com medo.

- Tá - ele se levantou bruscamente e tirou a maior peça do faqueiro. Coloquei as mãos sobre o peito e dei um passo para trás - vou dar uma olhada lá fora e quando não encontrar nada, essa conversa acaba.

Justin saiu pela porta e a fechei, embora ainda espiasse a rua pelo vidro, levou alguns minutos até que ele voltasse, o que para mim pareceu horas, tentei ignorar aquela sensação na nuca de algo atrás de mim me observava, mas olhei para trás pelo menos umas quinze vezes. A porta do banheiro aberta alongava o corredor escuro, de modo que não dava para ter certeza que estava vazio. Precisei me afastar depressa da porta quando Justin a abriu.

- Como eu disse, ninguém está te espionando, agora - ele pegou na minha cintura com uma mão e me prensou contra a parede do hall - me faça relaxar.

Ele invadiu minha boca com sua língua, eu queria me aconchegar no seu peito e me sentir segura, mas ele estava empenhado no oposto, subindo a mão para agarrar meu seio com força enquanto respirava como um animal prestes a atacar a presa e meu pensamento só se concentrava em uma coisa; a faca afiada que Justin ainda segurava.

            
            

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