Como se um ímã o atraísse para ela, o estranho pousou os olhos em Eliza e ela sentiu-se capturada pela floresta mais selvagem, enigmática e escura do verde cintilante do olhar dele. Naquele momento ela percebeu que poderia fazer vários retratos mentais daquele homem e transformá-lo em uma pintura única e adorada.
No entanto, esse encanto se perdeu no momento em que ele, de maneira descarada, a olhou de cima a baixo - percorrendo cada centímetro do corpo dela como um cão faminto. Ela deduziu que aquele homem não valia o tempo de sua admiração, pois estava visível que ele fazia o tipo "conquistador de muitas."
Ele continuou a fitá-la descaradamente. O olhar tímido de Eliza era visível e ela sentiu o rosto pegar fogo de tanto constrangimento. Inquieta, ela cumprimentou-o por educação e dirigiu-se para o salão de exposições e, a medida que caminhava, sentia o olhar feroz dele seguindo-a.
Depois do desconforto inicial, ela respirou fundo e retomou as suas atividades a todo vapor. Porém, não demorou muito para uma nova onda de inquietação a atingir ao sentir-se observada novamente.
No primeiro momento ela ignorou-o e fingiu não perceber a presença dele, contudo não seria de bom tom agir com indiferença tratando-se de um cliente em potencial. Sem opções, não lhe restou outra alternativa a não ser virar-se e atendê-lo.
- Em que posso ajudá-lo, senhor...
- Vallone, Giulio Vallone. - Ele apresentou-se com um sorriso enigmático no rosto enquanto estendia-lhe a mão para cumprimentá-la.
O aperto de mãos foi caloroso, embora um pouco demorado para o gosto dela. Aproveitando a proximidade entre ambos, Eliza tomou um tempo para analisá-lo detidamente. Giulio Vallone era realmente um homem impressionante e uma figura marcante. Ele era bastante alto, tinha cabelos escuros como a noite de inverno, olhos verdes e altivos, pele bronzeada e um físico de dá inveja a qualquer atleta. Provavelmente, em sua adolescência, ele havia participado de alguma liga estudantil de voleibol.
- E então, signorina...? - Giulio tirou-lhe de suas especulações com um tom ligeiramente esnobe.
- Villar, Eliza Villar. - Respondeu.
- Gostou do que viu? Ou prefere que eu me sente naquela poltrona enquanto você faz meu retrato falado? - Perguntou com um sorriso tão cínico que não deixava dúvidas quanto a indiscrição dela em analisá-lo. Infelizmente ele parecia ser como a maioria dos homens bonitos: arrogante e egocêntrico.
Eliza piscou completamente desconcertada por ter sido flagrada por ele. Ela fingiu não entender a pergunta e voltou-se a limpar as telas demonstrando uma falsa ignorância. Felizmente, antes que ela tivesse tempo de esboçar qualquer resposta vazia, eles foram interrompidos por Giulietta.
- Meu querido, sinto muito fazê-lo esperar. - Giulietta desculpou-se abraçando-o carinhosamente a seguir. -Estava em uma pequena reunião de negócios, espero não ter feito você perder o seu tempo vindo visitar-me.
Eliza aproveitou aquela interrupção oportuna para se distanciar o máximo possível deles. Giulio era um homem envolvente e aparentemente sinônimo de confusão e, quanto mais distante ela se mantivesse de problemas, melhor.
- Você está linda, minha querida. Na verdade, você é a mulher mais bela de toda a Itália. - Ele a elogiou segurando-a nos braços. Pelo visto os dois eram bastante íntimos.
- Oh, pare de ser galanteador. Quase não acreditei quando minha secretária falou-me que você estava aqui. - Olhando-o sorridente, perguntou. - Quando chegou de viagem?
- Ontem à noite. - Respondeu-lhe sério e prosseguiu. - Confesso que fiquei surpreso com a sua decisão de contratar uma estrangeira, por isso vim verificar pessoalmente.
- Ela foi uma exceção. Eliza foi muito bem recomendada pelo professor Salvattori. - Giulietta respondeu entrelaçando o seu braço ao dele e, logo após, puxou-o para seu escritório.
Mesmo Eliza mantendo uma distância considerável dos dois, ela não pode deixar de ouvir o comentário preconceituoso de Giulio em relação a sua admissão. Era surpreendente que em pleno século XXI ainda existissem pessoas com convicções fortíssimas a respeito do desmerecimento de um estrangeiro em seu país. Ao acordar e levantar, Eliza sentia na pele o peso de ser estrangeira e todos os dias ela tinha que lidar com a indiferença e a desconfiança das pessoas pelo simples fato da sua nacionalidade. O estágio na galeria só foi possível graças aos esforços do professor Salvatoriano que foi um grande amigo de Giulietta nos tempos de universidade, senão fosse por ele, certamente ela não teria a mínima chance.
Durante o tempo que estava em Florença, Eliza viu muitas portas se fecharem para si e vários olhares tortos de descrença foram-lhe dirigidos assim que a sua pronúncia no dialeto falhava. Às vezes ela se esquecia e dirigia-se a alguém em português ou misturava os dois idiomas. Mesmo com toda a dificuldade e, graças a convivência, seu italiano estava melhorando.
Absorta em meio a tantos questionamentos, o tempo pareceu voar sem que ela percebesse; ela só foi se dá conta do avançado das horas quando a tarde deu lugar a noite e a secretária de Giulietta a despertou de seus devaneios.
- Está na hora de fechar a galeria, signorina Villar.
- Oh, desculpe-me! Não vi a hora passar. - Justificou-se recolhendo os materiais.
Minutos depois ela deixou a galeria e se dirigiu ao ponto de ônibus mais próximo, pois teria uma longa caminhada pela frente até chegar ao seu destino final. Se ser de outra nacionalidade já era difícil, imagine ainda ser estrangeira e pobre.
Eliza dividia um pequeno apartamento de três quartos com duas colegas que conheceu na universidade: uma chilena e a outra mexicana. O relacionamento dela com as colegas de quarto até o momento era agradável. Elas não tinham muitos atritos e basicamente, Eliza passava a maior parte do tempo sozinha. Ao contrário dela, suas amigas gostavam muito da vida noturna, - embora Mirella fosse enfermeira de plantão, ela quase nunca recusava uma balada no seu dia de folga. Como Eliza sempre foi uma jovem retraída e muito caseira, ela preferia o silêncio de seu quarto do que a agitação dos bares e boates de Florença.
Eliza fez o restante do trajeto até o ponto de ônibus, absorta. Inevitavelmente a figura de Giulio parecia ter vontade própria na sua mente e ele invadia os pensamentos dela numa proporção assustadora. Parecia que cada transeunte que passava por ela, era Giulio.
Fechada em seu mundo, ela caminhou a passos largos, receosa de perder sua condução das 18h 30 min. Ao dobrar a esquina uma Mercedes prateada chamou-lhe a atenção. Nesse exato momento o sinal fechou e o carro parou próximo a ela. Eliza reconheceu imediatamente o condutor do veículo: era Giulio Vallone acompanhado de uma estonteante loira. Mesmo sendo difícil ignorar a presença deles, ela continuou seu caminho fingindo não vê-los.
Aliviada, ela viu sua condução aproximar-se. Ver aquele homem arrogante ao lado de outra causou-lhe certo desconforto. Porquê? Ela não sabia. Tudo o que sabia e queria naquele momento era chegar em casa e se enfiar debaixo do chuveiro para lavar seus pensamentos controversos e sua alma. Ela não estava apenas exausta mentalmente, como também faminta.
Já se passava das dezenove horas quando ela chegou ao apartamento e para sua surpresa, foi recepcionada por Lúcia que, ao vê-la, foi logo iniciando o interrogatório.
- Como foi seu primeiro dia de trabalho, Eliza?
- Foi maravilhoso! A galeria é um sonho. Estou amando meu trabalho. - Respondeu numa euforia contagiante.
- Fico muito feliz por você. Sei o quanto você batalhou por essa oportunidade. Parabéns. - Lúcia a parabenizou enquanto caminhava em direção a porta.
- Vais sair, Lúcia? - Eliza perguntou mesmo sabendo o óbvio.
- Sim. Ao contrário de você, não tenho vocação para a solidão ou celibato.
- Divirta-se! - Ela desejou sincera diante do azedume de Lúcia.
- Alguém desta casa precisa fazer isso por nós duas. E, eu pretendo aproveitar. - Disse enquanto lhe lançava uma piscadela sapeca.
Lúcia pegou sua bolsa do sofá e saiu deixando-a pensativa. De fato ela era uma jovem solitária, porém cair na noite em uma balada não amenizaria em nada sua solidão; pelo contrário, ela continuaria a sentir-se só. Eliza conhecia muitas histórias de pessoas que, mesmo mesmo estando cercada por amigos, continuavam a sentir-se solitárias. Muitas vezes ela se perguntou se solidão era uma condição ou uma opção.
Mesmo com esse pensamento enraizado na memória ela entrou no banheiro e tomou um banho rápido. Refrescada e totalmente a vontade, saiu do quarto e foi em direção a cozinha para preparar uma refeição leve. Nada muito elaborado.
Enquanto seu jantar estava no fogo, ela ligou a televisão e sentou-se no sofá para assistir a programação local – nada interessante, mas faria seu tempo passar mais rápido.
Tão logo seu jantar ficou pronto, ela serviu-se. Após a refeição, pôs a louça suja na pia e as lavou. Depois de organizar a cozinha e deixar tudo limpo, ela voltou para a sala e concentrou-se em assistir ao filme que agora passava "As crônicas de Nárnia." Eliza jurou que tentou assisti-lo sem bocejar.
Cansada e sonolenta, ela desligou a televisão e foi deitar-se, afinal teria muito trabalho na manhã seguinte e não poderia se dar ao luxo de ficar acordada até tarde.
Assim que colocou a cabeça no travesseiro, ela caiu no mais longo e profundo sono.