Aquele lugar era imenso e estava tão sujo que seria melhor derrubar e construir outro no lugar, algum com placas de metal ao invés de pedras nas paredes. Mais fácil de limpar.
Eu tinha acabado de sair do escritório do Diretor de ensino e seguia rumo a sala de artes quando o pequeno coelho se agitou dentro da minha blusa.
- Espere, peludinho - disse tirando ele do vão entre meus seios - você está me fazendo suar.
O coloquei entre as toalhas limpas no carrinho de limpeza que eu era obrigada a empurrar para todos os lugares, inclusive pelas escadas, o que me tomava muito tempo.
Suspirei pesado ao chegar na entrada da sala de artes.
- Como eu vou subir aí?
A sala ficava no alto de uma torre e para acessar era preciso subir uma escada de madeira íngreme, e passar por um alçapão no final.
Levantei a porta um pouco e ela caiu para o outro lado com um estrondo, a mulher dentro da sala se assustou emitindo um grito agudo.
Olhei para a mesa na sua frente, arrumada com diversas cartas de tarot. Pensei que a adivinhação servisse para prever o que ia acontecer, como ela não sabia que eu ia entrar?
- Desculpe, professora Erika. Eu preciso cuidar da sala.
- Claro, entre.
Subi o restante da escada e me coloquei em pé para então olhar para baixo e ver o carrinho no piso anterior, patético e inútil.
- Acho que vou precisar subir e descer muitas vezes.
- Não se preocupe, querida. Pode limpar se sentir útil mas eu já faço isso todas as manhãs - a professora levantou a mão e com um feitiço simples as almofadas que serviam de assento bateram uma contra a outra liberando o pó delas.
- Obrigada - suspirei aliviada - me poupou uma hora de trabalho.
- Se está com um tempo sobrando, por que não se senta?
Eu não disse que tinha tempo sobrando, mas alguns minutos de descanso não faria mal, além disso, a sala me trazia uma sensação de conforto como nunca senti. Era como se estivesse em casa, não no grande casarão em que cresci, aquilo nunca foi um lar.
O cheiro forte de café deixava tudo ainda mais aconchegante.
- Já leram seu futuro, Srta. Lacey?
- Pode me chamar de Angie. E não, eu não sou maga.
- Mas isso não importa - Erika apontou uma poltrona no meio da sala onde me sentei sem questionar - basta que a leitura seja feita por uma vidente legítima e para sua sorte - ela fez um gesto com as mãos de cima para baixo apontando o próprio corpo - eu sou.
- Isso me deixa um pouco nervosa, mas estou curiosa.
Erika me entregou uma xícara de café cheia e se sentou à minha frente, dei o primeiro gole, tinha muito pó e nenhum açúcar.
- É assim mesmo, leve o tempo que precisar. Enquanto isso porque não me fala de onde você é?
- Desculpe, mas parece um truque.
Ela riu mas aquiesceu.
- Então eu falo de mim, em primeiro lugar, não gosto de silêncio - por isso a vi falando sozinha pelo castelo - sou subjugada com frequência por minhas poucas habilidades fora a artes, mas o que eles se esquecem é que sou descendente de Cassandra Erika, isso é muita coisa.
- Eles seriam os outros professores?
- Precisamente.
Entreguei a xícara vazia para ela, contendo marcas de pó acumulado no fundo, ela a apanhou com as duas mãos como algo extremamente valioso que pudesse cair e se quebrar, virando de um lado para outro.
- Há um homem.
- Em Cramburg? Espero que não seja o Jones - eu ri, mas Erika pareceu nem ouvir a minha piada, o que me deixou sem jeito.
- Ele vai enganar você, vai te usar para um propósito sombrio - a voz de Erika ficava mais cavernosa à medida que falava, quase podia ouvir o eco dentro da minha cabeça - ah, querida. Ele vai te destruir.
- Aí diz o nome de quem eu tenho que evitar?
Ouvi um latido afastado, Erika levantou os olhos para além de mim vendo algo mais para o fundo da sala, olhei por cima do ombro e o vi com metade do corpo para dentro do cômodo.
- Essa coisa quase foi devorada - o professor Prescott levantava o coelho pelas orelhas bem, acima de sua cabeça - de novo.
- Ah, sim. Acontece o tempo todo - me levantei apressada correndo até ele e pegando o animal da sua mão, o coelho esfregou as orelhas doloridas com as patas - obrigada por salvá-lo.
- Devia cuidar melhor das suas coisas - Prescott resmungou - como os chicletes embaixo das carteiras na minha sala.
- Eu estou indo agora mesmo - coloquei o coelho de volta no aconchego do meu corpo e Prescott me olhou atravessado antes de sair, olhei para Erika que deu de ombros - ele é sempre tão mau humorado?
- Acho que passar muito tempo na sala de magia no porão não deixa ninguém feliz e como diretor da magia e encantamentos, Charles tem muitas preocupações.
- Engraçado como todo homem nesse castelo parece ser diretor de alguma coisa, eu só dirijo o carrinho de limpeza.
- Só não os deixe irritados, sabe... o ego - Erika riu.
- Obrigada pela leitura, Erika.
- Volte mais vezes, as coisas podem mudar.
Eu assenti e me despedi, eu já tinha ouvido os outros professores falarem sobre ela, suas previsões eram quase sempre fantasiosas então não me preocupei com o tal homem. Na verdade, ter um homem já seria lucro.
Além disso, ninguém poderia me destruir, não mais do que eu já estava. Meu coração acelerou e o coelho se agitou.
- Tudo bem, amiguinho. Vou ficar calma por você.
***
Ponto de Vista Charles Prescott
Ela demorou quase meia hora depois que eu já havia chegado e entrou sem bater, estava suada, com a pele brilhando e empurrou o carrinho barulhento para dentro.
- Desculpe, professor. Descer às vezes é mais complicado.
- Deixe o carinho lá fora.
Ela assentiu e o empurrou novamente. Parecia perdida e desastrada, de um jeito que me faria sorrir se não estivesse esperando há dias pelo serviço. Angelique entrou com uma espátula e uma escova.
- Quais mesas, professor?
- Todas elas - respondi sem tirar os olhos do livro na minha frente, mas assim que ela se virou eu a observei, seu corpo bem desenhado parecia moldado por um escultor, era irreal.
Não sou um homem de muitas amantes, mas sei bem como é um corpo feminino e impossível para uma mulher com o quadril tão largo ter uma cintura tão fina e seca. Eu tinha um palpite, mas, como uma faxineira passaria o dia todo usando espartilho?
E ao mesmo tempo que parecia estúpido também me provocava.
Lacey se ajoelhou no chão e levantou o rosto para a parte de baixo das carteiras, a espátula trabalhando rápido, parava vez ou outra para secar o suor da testa. O longo cabelo preto preso em um coque frouxo dava uma falsa aparência de seriedade.
Vê-la assim, ajoelhada, vermelha, transpirando e com a respiração pesada levou meu pensamento para outra situação, uma em que aquele espartilho fosse a única peça cobrindo seu corpo.
Fui interrompido por uma pequena dor aguda no tornozelo, arrastei a cadeira de uma vez e vi o meu inimigo, a bola de pelos pretos tentando mastigar o cadarço do meu sapato.
O levantei pelas orelhas.
- Seu...
- Desculpe, professor. Ele adora o porão é úmido e quente como uma toca de coelho, faz com que ele se sinta em casa.
- Eu já disse para cuidar das suas coisas.
- Bem, eu não posso colocar um simples rastreador no rabo dele - ela riu, desaforada - pode soltá-lo?
Soltá-lo. Sim, eu poderia apenas deixar ele no chão para sair saltitando até sua dona, mas a forma como ela ignorava sua magia me irritou, teimando em agir como um braçal quando era uma maga, rindo da minha capacidade intelectual mesmo que não soubesse.
- Pegue - arremessei o animal através da sala de encontro a ela, Angelique soltou um gritinho assustado e o coelho parou no meio do caminho para então, cair apenas um metro de encontro ao chão, ele correu até Lacey que o devolveu ao seu decote.
- Onde estava com a cabeça? Me assustando desse jeito - ela se levantou rápido, me olhando com seus olhos furiosos.
- Viu o que acabou de fazer? Você impediu que ele caísse.
- Isso não tem graça alguma, se não desse tempo de você segurar com esse feitiço ou sei lá ou sei lá o que.
- Não, Lacey. Não fui eu - como ela podia ser tão estúpida? Mas deixá-la zangada não foi minha intenção - está bem, mas devia cuidar melhor dele.
- Eu estou tentando, mas você e Pequena Lili não estão ajudando nem um pouco.
- Ah, por favor - aproximei a cadeira da mesa novamente - nem deu um nome a ele. E por falar nisso, não é ele. É ela.
- Como sabe?
Não respondi, só havia um jeito de saber se um filhote era macho ou fêmea e não estava disposto a explicar diferenças desse tipo para uma mulher adulta.
- Não sei que nome dar, é difícil escolher.
Ela resmungou, Angelique fazia muito isso. Eu não estava nem um pouco interessado em ter essa conversa novamente então decidi dar eu mesmo um nome para aquela coisa.
- Aléxo.
- Você disse que é uma garota.
- Não importa.
- Não parece nome de coelho.
- É um verbo grego, significa proteger - ela me olhou com a maior cara de dúvida - por ela ter mais capacidade de cuidar de você que você dela.
Eu esperei uma resposta atravessada, mas essa não veio, Angelique abaixou os olhos e acariciou a cabeça do coelho, estava triste.
- É o mesmo significado do nome de meu pai.
- Hum. Se ele te protegesse, não estaria trabalhando como faxineira em uma escola.
Ela se levantou devagar e se aproximou mesmo sem ser chamada.
- Eu não tenho vergonha do meu trabalho, preciso dele - seus dedos passaram sobre a mesa tirando uma camada de pó, ela olhou com a testa franzida e esfregou os dedos - acho que vocês precisam de mim também, mas não fale do meu pai, ele era um homem bom.
- Era?
- Sim, morreu quando eu tinha seis anos.
- Sinto muito - minha resposta foi sincera, mas carregada de uma angústia incomum - se me der licença - disse já me levantando - preciso ver o diretor, leve o tempo que precisar mas termine isso hoje.
- Sim, senhor - levei um segundo para entender que ela havia batido continência.
- Não repita isso.
Subi as escadas andando o mais rápido que consegui, cheguei ofegante à frente da porta e entrei enquanto ela ainda me anunciava.
- Um ano? Eu arrisquei a minha vida pra salvar um homem que viveu mais um ano?
- E está zangado comigo por isso? - sua calma me irritava ainda mais.
- Por que me mostrou a memória? Não fez diferença alguma.
Minha confusão era tanta que eu nem conseguia pensar em como me afetava ou o porquê.
- Achei que ter uma pessoa salva por sua misericórdia pudesse te lembrar do porquê estamos nessa missão.
- Missão - dei de ombros e caminhei pela sala a fim de me acalmar - já faz dez anos, ele está morto. Precisa parar de ver a insurgência em cada canto, acabou.
- Sabemos que não, aliás, como está sua animação para o próximo ano?
- Igual a todos os outros.
- Mesmo sabendo que chegará sua aposentadoria?
- Eu ainda tenho um ano de paz. Não vou pensar nisso por enquanto.
Arthur se sentou em frente a mesa e pegou sua caneta, dizendo sem palavras que não estava a fim de conversa.
- E quanto a Angelique?
- Ela não teve o pai a maior parte da vida, uma figura masculina e mais velha pode ser benéfica a moça.
- Quer que eu seja o pai dela?
- Eu não quero nada, Charles. E você?
- Ela precisa de aulas de magia.
- A Srta. Lacey já passou da idade escolar - ele abaixou os óculos me olhando por cima deles - a menos que algum professor queira lhe dar aulas particulares.
- Talvez a Erika, eu não tenho tempo para isso.
Ele assentiu e deixei a sala.
Aulas particulares era exatamente no que eu estava pensando desde que a vi sob a sombra da árvore, mas o meu tempo era valioso, se Angelique o quisesse, não sairia barato.