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Minutos antes
- O que você está fazendo aqui, Sorrentino? Enlouqueceu de vez? - Perguntou Camila, assim que acessou a parte detrás do casarão, no qual eram recebidas visitas impróprias ou menos importantes. - Se o Gallo te pega aqui, mata nós dois.
- Gallo está ocupado demais, chorando pela morte do melhor amigo. - Falou Sorrentino, com indiferença. - Além do mais, ele não costuma receber as pessoas que chegam até a casa dele pela porta dos fundos.
- Não esteja tão certo. Não é à toa que chamam o Gallo de " el diablo". Ele parece ter olhos em todo lugar.
- Se tivesse, teria evitado a morte de uma pessoa hoje, não acha? - Sorrentino abriu um sorriso largo, seu olhar era diabólico. - Além do mais, ele sequer está aqui. Acha que não me informei antes de vim?
- Entenda de uma vez por todas! - Exclamou Camila, irritada. - Gallo tem olhos e ouvidos em todo lugar.
Talvez o homem fosse arrogante demais para admitir que ele não estava sendo nada cauteloso naquele momento, ou talvez sua ignorância fosse mesmo mais forte do que a razão, porque Sorrentino não podia prever que justo Leonora, a irmã caçula de seu maior inimigo, estava a sua espreita. Assim que viu os dois juntos, ela tirou algumas fotos. Estava longe demais para gravar um áudio de voz. A forma com que Camila e ele conversavam, mostrava nitidamente que os dois tinham intimidade. Cochichavam, trocavam toques de mãos, e até alguns olhares cúmplices e confidentes. Leonora não sabia identificar se existia alguma relação de cunho amorosa, mas com toda a certeza existia uma parceria, uma afinidade entre eles. Leonora não conseguiria deixar aquilo como se nada, não tinha sangue de barata. Esperou pacientemente que Sorrentino fosse embora, ele não demorou mais do que dez minutos com Camila. Não houve beijo, ou abraço afetuoso, não houve sequer aperto de mãos. Leonora acreditava em duas alternativas: ou eles eram amantes, ou aparentados. Da forma com a que se olhavam e se tratavam, Leonora descartou a primeira hipótese. Ela se encolheu no canto da porta dos fundos, quando Camila caminhou para adentrar a casa pelo mesmo lugar que saiu. Agarrou o cotovelo de sua cunhada, a surpreendendo.
- O que diabos estava fazendo? Por que Sorrentino estava aqui? Por que estava conversando com ele? - Perguntou Leonora, de uma vez.
Camila empalideceu imediatamente. Ficou apavorada ao encontrar a irmã de Gallo, e mais apavorada ao ver que Leonora a flagrou com Sorrentino.
- Qual tipo de relação tem com aquele homem? - Perguntou novamente, sem dar a Camila a chance de responder.
Leonora imaginou que ela fosse desmaiar ali mesmo, no seu colo. O rosto estava tão branco, como se todo o sangue tivesse se esvaído dele. - Fala de uma vez! - Rosnou, antes de prosseguir. - Você é amante do maior inimigo do Gallo? É isso?
- M-me perdoe. - disse Camila, com a voz trêmula, muito depois.
Já estava recuperando a cor, o viço. O sangue voltou a circular pela face da jovem.
A respiração continuava ofegante, mas Camila puxava e soltava o ar devagar, como se estivesse muito nervosa, mas se preparando para algo. Leonora não entendeu do porquê dela pedir perdão. Franziu o cenho, confusa. Será que tudo aquilo era para distorcer a verdade? O fio da meada? Camila queria confundir Leonora? A mulher não conseguiu sequer abrir a boca para questionar. Foi uma questão de meio minuto, para que Camila tirasse a faca pequena da barra da sua calça, e golpeasse o abdômen da outra, no quadrante superior esquerdo. Camila até pensou em aprofundar o máximo que conseguisse, mas não teve coragem. Leonora caiu imediatamente de joelhos, agonizando, e a mulher aproveitou para fugir. Se não fosse pela empregada de confiança que entrou a tempo de chamar a emergência, Leonora com certeza não estaria viva para fazer história.
...
Momento atual
Gallo não saiu do lado de sua irmã caçula um único momento. Assim como ele, Arthur, o do meio, também estava lá. Os dois preocupados, esperando que Leonora acordasse para que conferissem melhor o seu quadro.
Arthur dormia profundamente, jogado na poltrona. Já Gallo, manteve-se atento. Estava acostumado a olhar e ouvir por todos. Estava acostumado a carregar o peso do mundo nos ombros, sozinho. Ele não dormia, não comia, não bebia.
Ficaria assim pelo tempo necessário. Não tiraria os olhos de Leonora até que a mesma acordasse. Por sorte, a perfuração não foi tão profunda ao ponto de atingir nenhum outro órgão, e milagrosamente, não teve necessidade de fazer nenhuma cirurgia. Quando Leonora estava prestes a abrir os olhos, Gallo quase pulou da cadeira.
- Léo... - Murmurou a garota, a voz ainda fraca.
- Boa noite, gatinha. Acho melhor não se esforçar tanto. - Falou o rapaz, com uma voz carregada de afeto.
Pela primeira vez em muito tempo, os olhos do Léo arderam em lágrimas. Queria dar força para a sua irmã caçula, mas ao mesmo tempo, sentiu que falhou na missão de cuidar bem dela. Já tinha perdido o seu melhor amigo de uma vida toda, e quase perdeu a sua irmã. Gallo não aguentaria perder mais ninguém. Aquela vida mafiosa era muito incerta, muito perigosa. Gallo lidava com todo o tipo de gente, e devido a isso, os seus sempre correriam perigo. Se Leonora saísse dali bem, sem sequelas, ele prometeu a si mesmo que se esforçaria para mudar de vida.
- Foi a Camila quem me atacou. Ela tem alguma coisa com o Sorrentino, só não consegui descobri o que. - Continuou Leonora.
Gallo estarreceu, perplexo. Estava em choque, e ao mesmo tempo, um frio percorreu suas espinhas. Nunca havia se sentindo tão mal, nunca havia experimentado tão forte o gosto da bile na garganta.
- No meu celular... No meu celular tem as provas.- disse a garota, novamente.
O celular de Leonora estava no bolso de sua calça, e como ela não mencionou a Camila a existência de provas, e a outra estava nervosa demais para ter lembrado disso, o aparelho continuava intacto. Uma das enfermeiras precisou tirar a roupa da moça na hora de fazer os pontos, e o celular foi entregue ao irmão da vítima. Gallo seguiu as instruções da jovem quase moribunda. O celular dela estava em seu bolso, e ele não demorou a averiguar a galeria. Ficou pálido ao ver as fotos das quais Leonora mencionou. Friamente, Gallo guardou o celular de volta em seu bolso. Leonora o encarava, com o cenho franzido. Estava preocupada com o que o irmão poderia se meter.
- Vai tirar essa mulher da sua vida, não vai?
- Nem ela e nem ninguém vai fazer mal para você, meu anjinho. Eu te prometo isso. Não precisa se preocupar, essa mulher não vai mais fazer parte da nossa família. - Ele acariciou os cabelos de Leonora, com cuidado.
O seu semblante frio e o seu tom sombrio não revelavam muito, mas por dentro, o apelido de " el diablo" fazia jus ao que Gallo sentia agora. Ele daria para Camila o seu merecido, e a morte seria muito pouco perto do que iria lhe acontecer. A faria pagar pela traição, e mais ainda por machucar uma das poucas pessoas que Gallo amava de verdade nesse mundo. Ninguém fazia mal a sua família e saia impune.
- O que você vai fazer? - Perguntou a garota, preocupada.
- Descansa. Não pensa em nada, que não seja a sua recuperação. - Gallo inclinou o tronco para a frente, em seguida, pousou um beijo na testa da moça.
...
Dois meses depois
Todos os días, desde o que aconteceu com Leonora, Gallo adquiriu o hábito de olhar noticiários no tablet. Nada escapava dos seus olhos, queria estar informado sobre tudo ao seu redor. Procurava alguma novidade sobre a quadrilha de Sorrentino, que por se tratar de um padrão bem inferior, sempre era o alvo da polícia, por não ter o menor respeito entre a nata mais importante de Rosa Rossa. Sorrentino trabalhava com o tráfico pesado de drogas, e há anos vinha escapando de levar o seu merecido. A quadrilha era perigosa, e ele tinha muitos contatos influentes, embora não tivesse cacife para competir com Gallo.
Camila havia sumido do mapa desde que ele descobriu que ela era uma maldita traidora, e ainda não tinha conseguido encontrar uma ligação entre os dois. Nunca Gallo perdia o controle da situação, nunca existiu algo do qual ele não soubesse, mas para tudo se tinha a primeira vez. Para variar, não tinha nada de interessante nas notícias. Falavam sobre tráficos de droga, mas nada mencionava Sorrentino. Tinha uma pauta sobre roubo de carro, quadrilhas que invadiam contas de bancos, depois, fofocas sobre socialites da cidade, até que...
Gallo paralisou por um minuto inteiro ao olhar aquela manchete específica.
" Herdeira multi-milionária, após morte brutal dos pais, chega em Rosa Rosso".
- " Maria Beatriz Savoia Mendonça e Albuquerque de Morais" Que nome grande, é parente de Dom Pedro, moça? - Gallo fez uma careta, não deixando de dar sua crítica, mesmo gostando do nome da garota.
Na verdade, não foi o bonito nome de Maria Beatriz que chamou a atenção dele.
- " Herdeira multi-milionária, pertencente à família tradicional da elite de São Paulo, que perde os pais após a invasão de bandidos em sua mansão. Ao que tudo indica, tratava-se de um assalto, no qual duas das vítimas não foram poupadas. Por sorte, Beatriz estava em casa, escondida, quando aconteceu a chacina..." - De repente, Gallo paralisou.
Talvez aquilo fosse o destino, colocando, finalmente, um presente em seu colo.
Uma moça de família tradicional, com um sobrenome respeitável, era tudo o que Gallo precisava para deixar o seu passado de el diablo, para trás.
Desde a morte de Marllon e a agressão brutal de sua ex namorada contra a sua irmã, Gallo queria mudar de vida.
Queria oferecer a Leonora todo o conforto e qualidade que ela precisava, para se recuperar bem, depois de tudo.
- Maria Beatriz Savoia Mendonça e Albuquerque de Morais. - Repetiu Gallo, mais uma vez. - Com um sobrenome desse vinculado aos meus cassinos, e até aos meus outros negócios, duvido que alguém não me veja como um cidadão respeitável. Além do mais, com o dinheiro dessa garota, não vou precisar mais me envolver em transações ilegais.
- Falando sozinho? - Perguntou Arthur, seu irmão do meio, que chegou justo na hora que ele falava com seus botões.
- Apenas me parabenizando por ter achado a salvação de nossos problemas. A partir de agora, nós, os Gallo's, não trabalharemos mais com negócios clandestinos.
- É? E qual seria esse milagre? Do que vamos viver? Porque desde que me entendo por gente, nunca foi diferente. Ganhou na loteria?
- Quase isso, irmão. O nome do milagre é Maria Beatriz Savoia Mendonça e Albuquerque de Morais. - disse Gallo, com um sorriso largo estampado no rosto.
- E esse sobrenome todo?- Arthur franziu o cenho.
- Esse sobrenome todo, é justamente a chave para regularizarmos nossos negócios. Com o nome e o dinheiro dessa moça, poderemos viver como cidadãos respeitáveis.
- Não me diga que está pensando no que eu estou pensando...
- Se estiver pensando que eu estou pensando em me casar com ela, Arthur, você acertou em cheio. Vou fazer essa paulistinha cheia de sobrenome se apaixonar por mim. Graças a ela, serei um homem honesto.
...
Por mais que Beatriz quisesse se obrigar a terminar pelo menos um capítulo daquele livro, ela não conseguia deixar a primeira página. Não que a leitura fosse entediante, aquela já era a terceira vez que ela lia flanando por Londres, de Virgínia Woolf. Beatriz estava acostumada a inserir todo tipo de leitura em seu dia a dia. Gostava desde artigos científicos e astronomia, até romance. Dos romances mais bobos, até os mais intelectuais. Amava ler, aquilo sempre era o seu refúgio. Mas dessa vez, nada conseguia lhe prender a atenção. Os pensamentos da jovem estavam a mil léguas dali, em outra circunstância. Assim que colocou os pés em Rosa Rosso, ela prometeu que começaria uma vida nova, e que deixaria tudo para trás. Até viu o seu nome exposto no jornal local, mas não ficou com medo. Todos diziam que Rosa Rosso era um lugar calmo, pacato, seguro... O único problema que existia na pequena cidade era o conflito entre el diablo, o líder dos cassinos clandestinos nos quais frequentavam os criminosos da cidade, e Sorrentino, líder do tráfico de drogas. Não havia histórico de assaltos, invasões de casa, ou morte entre os cidadãos comuns da cidade. Toda a briga que existia, era entre aqueles homens mafiosos, e desde que Beatriz se colocasse bem longe deles, não entraria em problema. Segurando a capa de um de seus livros prediletos, os dedos de Beatriz apertaram o lugar com bastante força. Sempre, em alguns intervalos de minutos nos quais sua mente voava para longe, ela não evitava reviver aquele episódio.
Fechou os olhos, com força, seus músculos cedendo aos espasmos trémulos com a torrente de memórias que a assombrava.
Beatriz sentia o cheiro dos biscoitos de manteiga que estavam no forno, enquanto terminava de estudar para a sua prova. Como seu pai gostava de lembrar, ela era a única herdeira de todo aquele patrimônio, e precisava entender como administrar bem o que era seu. Entre a sua lista de escolhas, Beatriz ficou com economia. Sempre foi boa em matemática, principalmente nos assuntos financeiros. Quando a empregada trouxe a primeira fornada para sala de estar, lugar no qual Beatriz esperou estrategicamente para receber os seus biscoitos amanteigados, ela decidiu fazer uma pequena pausa para devorar aquelas delícias.
Chegou a morder o primeiro pedaço de biscoito, quando escutou um estrondo vindo do lado de fora. Ela arregalou, assustada, aquilo parecia um tiro. Seus pais que também estavam na sala de estar, assistindo um filme, levantaram-se do sofá com um pulo. Um dos seguranças entrou logo depois, desesperado. Atrás dele, ainda do lado de fora, vieram barulhos intensos de uma troca de tiros.
- A casa está sendo invadida, senhor. Estamos trocando tiros com eles, mas são muitos, e a julgar pela potência das armas... - O homem não terminou de falar, logo foi atingido com um tiro nas costas.
Em meio aquelas balas perdidas, a única coisa que o casal pensou, foi em proteger Beatriz.
- Rápido, minha filha. Vá para o andar debaixo que tem no piso falso da cozinha, fique lá escondida. Não esqueça de se trancar por dentro com o cadeado de ferro. - disse Cecília, mãe de Beatriz, incentivando sua filha a se mexer ao empurrar as costas dela.
- Mas e vocês? - Perguntou Beatriz, preocupada, se recusando a deixar os pais.
- Vamos ficar aqui. Se os ladrões forem procurar, podem acabar te encontrando. Conosco aqui, eles se darão por satisfeitos. - Rebateu sua mãe.
- Mas... - Beatriz tentou argumentar.
- Faça o que sua mãe está mandando, Maria Beatriz! - Falou Augusto, seu pai, alterado.
Com lágrimas nos olhos, a garota correu para a cozinha, seguindo as instruções dos pais. Ela ficou escondida no porão da casa, entre alguns móveis velhos, que eram relíquias e sua mãe fazia questão que fossem higienizados todos os dias. Ela sempre achava exagero, mas agora, agradeceu, ou do contrário, morreria de alergia. Beatriz, por mais que estivesse escondida, ouvia nitidamente as vozes lá em cima. Os bandidos gritavam, ameaçavam, faziam terrorismo. Estava o maior tumulto, quando de repente...
Beatriz arregalou os olhos e ficou pálida, ao ouvir dois tiros. Seu coração batia forte, a vontade de vomitar também era grande. Ela sabia, apenas com aquele som, ela sabia que tinha perdido a sua família. Agora, Beatriz estava sozinha no mundo. Ela levou uma de suas mãos a boca, abafando os soluços do choro recorrente. Ela se recusou a sair dali, até que a polícia a encontrasse.
Voltando para a sua realidade após ouvir um barulho de pedras rolando no asfalto, enquanto as bicicletas passeavam do outro lado da rua, Beatriz se convenceu de que dessa vez continuaria com sua leitura. O jardim estava lindo, o clima agradável. E ela deixaria o passado para trás. Seguiria sua vida em frente, por mais difícil que fosse. Ficando novamente distraída, dessa vez, com sua leitura, Beatriz nem percebeu que estava sendo vigiada.
Do outro lado da rua, observando-a pelas aberturas do grande portão, Gallo a estudava. Passaria alguns dias a observando, até ter certeza de como poderia se aproximar dela.