Ossos de vidro, alma de fumaça
img img Ossos de vidro, alma de fumaça img Capítulo 2 Ossos de vidro, alma de fumaça - Parte 2
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Capítulo 6 Cartas para ninguém - Parte 2 img
Capítulo 7 Cartas para ninguém - Parte 3 img
Capítulo 8 Cartas para ninguém - Parte 4 img
Capítulo 9 Depois da meia-noite - Parte 1 img
Capítulo 10 Depois da meia-noite - Parte 2 img
Capítulo 11 Depois da meia-noite - Parte 3 img
Capítulo 12 Depois da meia-noite - Parte 4 img
Capítulo 13 Depois da meia-noite - Parte 5 img
Capítulo 14 Depois da meia-noite - Parte 6 img
Capítulo 15 Depois da meia-noite - Parte 7 img
Capítulo 16 Depois da meia-noite - Parte 8 img
Capítulo 17 Depois da meia-noite - Parte 9 img
Capítulo 18 Depois da meia-noite - Parte Final img
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Capítulo 2 Ossos de vidro, alma de fumaça - Parte 2

Parte dois - Amantes e problemáticos

A apresentação do dia seguinte fora cancelada para a próxima semana. Gerard andava de um lado para o outro, dona Márcia tentava em vão acalmar o homem em meio aos seus surtos, enquanto Loryna folheava uma revista de moda, sentada tranquilamente no sofá.

– Gerard, fique calmo, o mundo não vai acabar por causa de um simples cancelamento de apresentação – Loryna disparou para ele, ficando inquieta com o homem indo e vindo pela sala de sua casa.

– Tragédie – cuspiu o homem em francês – uma terrível tragédia.

– Ora, Gerard, não foi a Torre Eiffel que caiu. Sossegue. – Márcia berrou e se juntou a filha, esparramando-se no sofá.

O homem vibrou num salto impulsivo e caiu num segundo sofá do outro lado da sala. Loryna e dona Márcia riram e arrazoaram dele, que por sua vez, fechou a cara e, tomando uma revista nas mãos, se dispôs a folheá-la.

– Se não pode com eles junte-se a eles, não é mesmo, Gerard – dona Márcia caçoou do homem birrento, balançando uma revista nas mãos.

Por sua vez, Loryna se ergueu de seu lugar e disse:

– Vou sair, mamãe. Fique aqui com Gerard, tente suportá-lo se for capaz. Qualquer novidade, me avise.

Largando a revista na mesa de centro, saiu da sala e subiu para o andar de cima, a fim de se trocar em seu quarto. Escancarando a porta, e batendo atrás de si, Loryna se trajou com um leve vestido florido e calçou sandálias frescas e foi caminhar. Saiu de casa há tempo de evitar ser bombardeada pela discussão de sua mãe e Gerard.

Ganhou a rua à sua frente ela sorriu para o majestoso céu acima dela. O vento, aliás, a brisa que soprava ali passava por Loryna e a saldava, batendo em seu rosto, esvoaçando-lhe os cabelos que ela soltara para sair de casa.

Seu vestido ondulava ao vento, suas pernas eriçavam mal-acostumadas com o tempo gélido. A bailarina foi para a praça, onde um lago era mantidopreservada lá. A mais bela cena na opinião de Loryna, não porque a lembrava de cisnes e sua profissão como bailarina, mas porque era um lugar que lhe trazia calma.

A garota amava balé, sua profissão de bailarina era o que a mantinha viva, o que fazia pulsar seu coração, mas turnês, apresentações e discussões com seu austero empresário Gerard a deixavam exaustas. Eram poucas as folgas que tinha para poder passear a esmo por aí, e ela as aproveitava ao máximo quando as mesmas surgiam.

Até mesmo caminhando Loryna confundia-se entre os passos de dança e andar com todos andavam. Ela não podia evitar, bailar estava preso a sua personalidade, era o que a tornava especial. Andando, a moça apreciava a beleza da cidade onde vivia. Com muitas casas elevadas, prédios diversos. Nova York era linda no outono.

Entrando numa praça cercada por belas árvores, circulando pelos corredores de arbustos e moitas, a moça aboletou-se em um dos bancos no interior do lugar, e ficou ali observando o lago de longe.

Os pensamentos da garota se enevoaram acima de sua cabeça, deixando-a perplexa. O acontecido da noite passada ainda a chocava bastante. Ela não compreendia como errara aquele simples passo. Sabia a coreografia perfeitamente. Vivera aqueles passos nos ensaios e em outras apresentações.

De olhos semicerrados e a boca crispada, Loryna refletia nas dores que havia assolado a garota dias atrás. Uma onda de preocupação inundou-a. Se Gerard sequer sonhasse que a garoto tivera fortes dores nas pernas e não o comunicara, certamente o homem saltitaria metros e metros de raiva. A ideia a fez sorrir. Gerard era um bom homem, rude em certas ocasiões, mas fora quem a enxergou no fundo de uma sala empoeirada em sua antiga escola de balé e a trouxe para fora do anonimato, fazendo-a brilhar.

"Ele me ensinara a voar", pensou, satisfeita. Ela era grata à todos os que a auxiliavam nesta nova etapa de sua vida. Do anonimato aos holofotes, a carreira da jovem garota de 20 anos se elevara como um balão, se perdendo na imensidão do céu. Algo inexplicável, fruto de seu tão raro talento.

Fustigada com lembranças de seu passado e de seu presente, a garota perdeu o olhar no lago. As árvores faziam sombra sobre a praça; flores caídas e folhas secas flutuavam nas superfícies das águas, parecia um quadro natural pintado pela natureza. Era perfeito.

Loryna fez um gesto em falso tentando se levantar do banco, suas pernas não obedeceram ao seu comando, em compensação a garota emitiu um grunhido de dor. Seus ossos doíam, sentia os músculos das pernas incharem, não conseguia se levantar.

Aflita, a garota pensou em gritar por ajuda, girando a cabeça e olhando em volta da praça não avistou ninguém, estava sozinha ali. O lago era sua única companhia, era quem presenciava suas dores e suas desgraças.

Tentando se manter calma, Loryna ousou flexionar suas pernas. Sem sucesso, o resultado foi mais um grito de dor, a garota agonizava no banco daquela praça. Já não suportava omitir seus gritos, agora os mesmos fugiam de sua boca e resvalavam por entre as árvores.

Os arbustos atrás do banco de Loryna farfalharam e um garoto de cabelos claros e olhos azuis saltara para frente do banco, surpreendendo a moça, que hesitou em gritar novamente.

– Você? – Loryna se recordara daquele rosto. O mesmo rosto, os mesmos olhos que a surpreendera na noite anterior.

Era o mesmo rapaz que se sentiu atraído por ela e fora até seu camarim, preocupado com sua queda repentina. Eram os olhos de John que agora a fitavam, brilhavam ao vê-la.

– Você está bem? Ouvi seus gritos de detrás das árvores – John pronunciava tais palavras com uma leveza em sua vez, desta vez não era uma leveza falsa.

Apesar da situação dolorosa em que se reencontraram, os dois sentiram-se calmos. John fora a praça para se acalmar, acordara com os impulsos martelando em sua mente, Loryna fugira das brigas e discussões em sua casa. Ambos ansiavam pela paz, e era o que um proporcionava ao outro.

– Não consigo me mover – retorquiu Loryna para John, inquieta.

John se ajoelhou diante de Loryna e, examinando as pernas da garota, o rapaz massageou suas panturrilhas, carinhosamente. Loryna sentiu o calor das mãos aconchegantes e convidativas roçarem entre seu vestido florido. Seus olhos lacrimejaram, sentiu o prazer e o pesar dentro de si mesma, como se a garota fosse uma consternação de emoções ambulantes.

Num movimento involuntário, Loryna se ergueu do banco, não conseguindo se equilibrar nas próprias pernas, cambaleou para frente e caiu por cima de John; espatifaram-se na grama. Seus olhares se encontraram, se combinaram. Como estrelas se chocando, como dois corpos celestes inflamados se colidindo causando erupções e explosões em grande escala.

– Me desculpe – murmurou a garota, que sem querer, uniu sua mão a de John, tateando em busca de amparo.

Os dois hesitavam no chão; enquanto a brisa soprava fraca sobre o lago, os dois arfavam caídos no gramado da praça.

– Seus olhos brilham – John ressaltou.

Eram como duas pequenas crianças que se conheciam há anos. Por eles próprios nunca mais se ergueriam do chão, era acolhedor para ambos estarem ali, caídos um sobre o outro. John suportava o corpo de Loryna como se fosse capaz de ficar ali por horas, e a garota ainda não soltara sua mão.

Impulsionados por algumas pessoas que iam passando por ali, quase constrangidos, mas insatisfeitos, decidiram levantar-se; John esgueirou o corpo de Loryna de cima do seu, com cuidado para não a machucar, ergueu-se e ajudou-a a se sentar novamente no banco.

– Ainda dói? – O rapaz encurvou-se para ela.

– Sim, parece dormente, mas bem pior – Loryna explicou, fazendo uma careta de horror.

– Vou te levar até sua casa – disparou John, o garoto não deu a chance nem de argumentação à moça. – Vamos, se apoie em mim.

Loryna passou um dos braços por cima do pescoço de John e o garoto segurou o outro braço, amparando-a em cada passo falso. O caminho não era longo, e os dois percorreram rapidamente. Quando Gerard abriu a porta, incrédulo e aos gritinhos ao ver Loryna nos braços de John, possivelmente ferida.

– Calma, Gerard – vociferou, soltando-se de John e caindo levemente sobre o sofá.

– Ela está bem, senhor – John disse enquanto se sentava ao seu lado.

Gerard bateu a porta e gritou pela mãe da garota. Márcia entrou na sala e correu para sua filha, interrogando-a.

– O que houve? Se machucou? Caiu? Diga logo, Loryna – dona Márcia metralhou a menina com as perguntas, fitando-a e lhe conferindo o corpo todo.

– Mamãe, estou bem. John me ajudou a voltar para casa – os olhos de dona Márcia e de Gerard se voltaram para o rosto do garoto.

– Muito obrigado – disseram em uníssono.

Gerard se encarapitou ao lado de John, com palavras confusas, disse:

– O que fazia na praça? Quem é você? Reponsé s´il vous plaît – seu sotaque causou alguns risinhos em seu investigado.

– Gosto de ir à praça para pensar – respondeu John, convencido. – Pensar é algo que todos deveriam fazer de vez em quando.

John não dava atenção nem para as indagações de Gerard ou os grunhidos e soluços de dona Márcia, continuava a se dedicar à Loryna. Acariciava suas panturrilhas inchadas e doloridas, com deslizes singelos e toques carinhosos. A bailarina ferida sentia arrepios simultâneos aos toques que John dedicava a ela.

– Não há para que se preocuparem – interrompeu Loryna. – Eu estou ótima, vou para meu quarto.

Mas, a garota não se moveu, e outra vez suas pernas não se firmaram no chão. Os braços rápidos de John a agarraram no ar e o seu corpo se chocoucom o da garota, freneticamente.

– Não posso andar – se desesperou a moça. – O que eu tenho?

Seus olhos se desataram em torrentes de lágrimas, deixando a cabeça cair sobre o ombro de John, ela chorou amargamente, sem saber o que lhe causara a paralisia das pernas. Tomando a bailarina nos braços, o garoto subiu as escadas e pousou o corpo de Loryna sobre sua cama. A cana chocou e fez lágrimas caírem dos olhos de Gerard e dona Márcia, e seguindo-os, os dois observavam os garotos sem dizer palavra alguma.

– Tenho que ir embora – falou John, rompendo aquele momento delicado. – Espero que fique melhor – e depositou um beijo em sua testa, como um pai faz com um filho na hora de dormir.

E sem cumprimentou nenhum o rapaz deixou o quarto, no andar de baixo a porta da frente se abriu e fechou-se num estalo. Loryna encarou as duas pessoas em seu quarto e, chorando de tristeza profunda, desmaiou com a cabeça pousada no travesseiro molhado de lágrimas.

            
            

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