Limitada, a garota trazia no porão de suas lembranças as cenas de seus muitos espetáculos; trazia as cenas dos saltos, dos passos, das atuações; sua mente reverberava com tantos flashbacks que a sondava. Ter John ao seu lado era algo sem explicação, o garoto, o perfeito garoto de olhos azuis, surgira em um momento delicado de sua vida.
Ela nunca mais bailaria, os palcos foram deixados de lado, existindo apenas em suas memórias; somente a presença de seu mais novo amor era capaz de amenizar o sofrimento recente.
– Que tal um passeio hoje? – John sugeriu, esteando-lhe um beijo.
– Ótimo – rebateu, mordiscando o lábio inferior do garoto, que enrijeceu.
– Então, vamos – ele replicou.
Loryna estava de shorts jeans e camiseta azul, seus cabelos escuros presos num rabo de cavalo faziam com que seu rosto parecesse maior e que brilhasse como uma luz natural; John a tomou nos braços, carregou pelos corredores, desceu a escada e a sentou em sua cadeira de rodas, massageando suas pernas e panturrilhas.
– Não se preocupe, não dói tanto assim – Loryna ponderou para ele, segurando sua mão.
John sorriu, abriu a porta, e agarrando uma pequena cesta, empurrou a cadeira de rodas para fora da sala. Com cuidado ele manuseava o assento onde aquela que ele amava estava sujeita a permanecer.
Não ventava, o sol brilhava majestosamente num céu límpido que não se via há dias, a moça, sentada e calada, Loryna observava as muitas nuvens, que assim como ela no passado, bailavam no céu. A garota sorriu olhando para o alto.
Os dois foram para a praça da cidade; o outono castigava as árvores de um jeito delicado e harmonioso, o lago no centro da praça, agora coberto integralmente de folhas e galhos.
Os tijolinhos cinzas que cobriam todo espaço do piso, fora os espaços de gramado e arbustos, dificultavam a locomoção da cadeira de rodas. Foi quando John, abrindo olhos interiores, passou a perceber detalhes que jamais havia prestado atenção, ou notado que existiam.
Loryna já não andava mais, e tendo que empregar uma pontada de força a mais empurrando a cadeira por cima dos tijolinhos, o rapaz travou as rodas e recostou-a junto ao banco onde se sentou de lado a garota.
– Eu adoro esse lago – ela declarou. – É como se fossemos ligados, entende?
– Claro, que entendo – respondeu John. – Eu sou ligado a você, Lory.
A garota encarava o lago, notando os galhos se movimentando por sobre a superfície das águas. Aquela época do ano fazia tudo ficar um pouco mais pensativo e reflexivo, assim como o lago.
Aquele simples lago, em diversas épocas do ano, representava algo de diferente para diferentes pessoas.
Para Loryna, a menina que fora impedida de bailar como um cisne, o lago funcionava como um túnel do tempo, onde a moça mergulhava e se via em seu passado glorioso e cheio de brilho e aplausos. Para ela suas lembranças não lhe pesavam na mente, nem machucavam sua alma como chagas emocionais, ao contrário, suas lembranças a faziam se orgulhar de quem um dia ela foi.
As lembranças também agem de diferentes formas sobre as pessoas, Loryna era um bom exemplo de como as lembranças são boas e eficazes.
O lago fazia John estremecer. Ele não tinha medo, não, ele tinha medo, sim. Aliás, muito medo, quase um assombro. Em suas memorias ele trazia a lembrança de quando sofreu um acidente uma certa vez. Por pouco não morreu.
John era um exemplo de como não apenas o lago, mas também as lembranças podem afligir uma pessoa.
– Eu lhe trouxe um presente – ele a surpreendeu com sua fala repentina.
Loryna arregalou os olhos e abriu um largo sorriso.
– O que é? – Ela perguntou, ansiosa.
– Uma lembrança – ele falou, puxando uma caixa amarela de debaixo da cadeira de rodas, num compartimento escondido. – Aqui está!
Colocou a caixa nas mãos de Loryna. Ela abriu rapidamente... E ficou atônita ao ver o que continha em seu conteúdo.
Loryna emergiu de dentro da pequena caixa amarela um par de sapatilhas brancas, como as que sempre usava em suas apresentações. O único detalhe divergente que aquela sapatilha tinha das demais outras que a garota conhecia era um cordão vermelho.
Aquele cordão vermelho era como uma quebra na aflição de Loryna, era também uma ruptura em sua alma.
– Por que uma sapatilha? – A garota perguntou à John, com uma expressão de mágoa em seu rosto. – Estou destinada à essa cadeira de rodas para sempre, sabe disso.
– É apenas um presente – ele disse. – Um gesto de carinho, entende?
– Não, não entendo – Loryna vociferou. – Nunca mais vou subir num palco, nunca mais vou me apresentar num teatro... nunca mais, John.
– Já chega de se culpar e se martirizar pelo que te aconteceu – John replicou para ela, zangado. – Tem a vida pela frente, Loryna, não mate sua alma antes de seu corpo morrer.
– Pare! – Gritou.
Num relance, Loryna tentou se erguer da cadeira e correr, suas pernas trincaram, seus ossos racharam outra vez... Eram de vidro. John agarrou-a antes que caísse no gramado.
– Eu te amo, Loryna – ele declarou-se, lhe fitando nos olhos.
– Me ajude a viver, John, por favor – disse ela em meio às lágrimas que rompiam de seus olhos meigos.
John sentou-a na cadeira de rodas, ajustando suas costas e acariciando suas pernas.
– Eu também preciso de ajuda – começou ele. – Tenho transtornos de ansiedade, acabei de me recuperar de uma depressão e sofro cada vez que coloco os meus pés para fora de casa. Eu sou louco, Loryna.
– Não é, não – interrompeu ela. – Você é perfeito.
– Sou uma equação mal resolvida – sibilou. – Minha alma é tão densa como o ar, e tão contaminada como fumaça. É isso que minha alma é... Fumaça.
Os dois se calaram.
O vento começou a soprar, trazendo-lhes o frescor das árvores para suas narinas, tocando-lhes com o gracioso cheiro de outono. O céu ainda se mantinha majestoso, o sol brilhava, iluminando-os e fazendo-lhes abrir e fechar os olhos com mais frequência.
– John, eu ficarei presa para sempre, fixa em um único lugar; quero seja minhas pernas, me leve onde quer que você vá – pediu ela, segurando sua mão contra seu peito.
– Eu posso ir a todos e quaisquer lugares que quiser; posso ver as mais belas obras de arte e ler os mais rebuscados livros, mas com a minha alma como sendo feita de fumaça não sou capaz de sentir os mais minuciosos detalhes e sentimentos que abriguem em si – atalhou ele, baixando os olhos. – Seja minha alma, Loryna. Sinta por mim, por favor.
John e Loryna permaneceram ali, calados, ambos segurando as mãos um do outro.
Por um instante, estar ao lado de Loryna, fez John pensar em como a vida pode dar grandes reviravoltas, e que os momentos, os mais simples e passageiros possíveis, devem ser aproveitados e vividos da melhor maneira que alguém possa imaginar.
Deixando-se levar pela própria reflexão, John se inclinou para Loryna, e numa súbita fração de segundos seus lábios davam estaladas apaixonantes, seus beijos ritmavam como as batidas de seus corações.
A vida nem sempre é a coisa mais feliz que se tem, nem muito menos a coisa mais feliz que se vive. John e Loryna, dois jovens apaixonados, vivendo em sua idade mais aflorada de sentimentos e medos, compartilharam por algum tempo seus amores e temores.
Gerard, o homem dos saltinhos nervosos, em muitos de seus surtos saltitantes, fez revelações escabrosas sobre seu temperamento compulsivo. Com o tempo, John não precisou revelar, mas ele mesmo revelou sobre sua dependência à cigarros. Ele era outra alma perdida que buscava abrigo em algo que julgava melhor que si mesmo.
A mãe de Loryna, dona Márcia, que tratava a filha como um bebê recém-nascido, em muitas discussões chegou a expulsar John de sua casa, o que por pouco não ocasionou numa fuga desesperada dos dois enamorados.
Por fim, eles puderam viver, sorrir, chorar, se emocionar, e o melhor, puderam se amar, com a certeza de que os sentimentos que abrigavam em seus corações eram únicos e verdadeiros.
Mas, nada é para sempre. Nem o sol, nem a lua, nem as estações do ano, nem mesmo aquele lago ou as lembranças. Nada é para sempre, tudo tem um fim.
E, num dia de verão, num dia em que sol sorriu para todos, Loryna recebera a visita de uma velha amiga: a Morte.
Essa era a visita para a qual ninguém nunca estava a fim de lhe abrir a porta. Mas, ela sempre entrava quando chegava o momento certo. E esse momento chegou num estopim de acasos.
A morte de Loryna foi como uma névoa escura e densa pairando por sobre John. A morte veio como uma nova depressão, como se morresse também. Ele se sentiu sem vida ao ver sua amada naquele caixão.
"Isso não é um adeus de verdade", pensou John, entrando no cemitério, ajustando a gravata em seu colarinho.
Era como não poder sentir a brisa leve e a calma que a mesma soprava; era como não ouvir o canto dos pardais que piavam nas poucas árvores que rodeavam o lugar; era como estar morto também. O terno preto que John vestia lhe acalentava um calor terrível dentro de si. Sua vontade era de arrancá-lo e correr daquele lugar, não suportava a ideia de perdê-la. Era demais para ele.
Vê-la imóvel deitada no caixão era algo deprimente. Para o garoto foi como estar na presença da própria morte, como se realmente abrisse a porta para aquela hóspede tão fugaz e sombria. John encarou o corpo da garota ali dentro do caixão; seus olhos nunca mais brilhariam, seu toque suave eriçaria os pelos do garoto de olhos azuis, ele nunca mais se satisfaria em seus doces beijos, e o principal, ela nunca mais o amaria outra vez.
Isso foi o que o corroeu por dentro, e manchava seu coração. Em sua mente ele ainda guardava resquícios de lembranças sobre suas danças e suas apresentações. Mas, não passavam daquilo: meras lembranças.
Loryna havia deixado aquele mundo, havia abandonado os palcos e John ficara sozinho para sempre, deixando apenas as lembranças vivas na mente de garoto que um dia a amou tão incansavelmente.